domingo, 29 de junho de 2014

A Arte de Evacuar


É repetitivo e, por isso, maçador. É exaustivo e, por isso, cansativo. É obsessivo e, por isso, doentio.  É uma merda tão grande que até já me faz ficar cansada e com asco de mim própria. Mas tem que ser bradado e exorcizado para não ficar nas entranhas. Por isso, escrevo e escreverei até que as mãos me doam. Negativismo ou lá o que for, para baixo todos os santos ajudam.
As entidades que supostamente existem para representar o povo e, por conseguinte, agir em conformidade com respostas às necessidades das pessoas, proporcionando-lhes uma vida com dignidade são um embuste. Um embuste é pouco: são um embustão (como não há palavras para a sua definição, acabei de inventar uma). A Segurança Social existe para dificultar o acesso a apoios que supostamente seriam direitos adquiridos, como é o exemplo do abono de família para crianças e jovens em idade escolar, acesso a tarifas sociais para pessoas com carências económicas, encaminhamento personalizado para problemas individuais e por aí fora. Tal como a sua designação sugere, está subentendido que se trata de uma instituição que se presta a dar segurança às pessoas. Mas não dá. Fá-las sentirem-se inseguras não só no decorrer dos longos e morosos processos burocráticos apilhados de papéis que, pelo montante estimado, devem equivaler a várias centenas de sequoias milenares abatidas para a fabricação das resmas, como também no atendimento asqueroso que fazem questão de prover aos seus usuários, fazendo crer que por detrás desta máquina magnificamente oleada existe um campo de treino para universalizar o perfil do pessoal que lá trabalha. As palavras de ordem ensinadas devem ser: não e não. Depois do treinamento e assimilação das palavras-chave, vem a correção da postura física e facial: nunca sorrir para os utentes, mostrar um ar de superioridade, intimidá-los com olhares repreensivos e nunca, em qualquer ocasião, olhar para eles como seres humanos e sim como um número, neste caso concreto, o algarismo do ticket da vez. Passados os testes no campo de treino, as pessoas recrutadas ainda devem tomar o soro da verdade e ser submetidas a dinâmicas de grupo simuladoras de atendimentos reais. Se não cumprirem com todas as regras, não são contratadas. Se, por exemplo, esboçarem um sorriso no decorrer de uma sessão ou se disserem a palavra sim, no lugar da negação, ficam automaticamente de fora da corrida, perdendo a oportunidade de uma vida enfadonha, causadora de graves danos retais vulgarmente conhecidos por hemorroidas e que, normalmente, advêm de um sedentarismo extremo pelo poiso excessivo do traseiro sobre um assento qualquer.
Agora o IEFP, cuja sigla abrevia o nome pomposo de Instituto de Emprego e Formação Profissional. A sua sistemática indiferença quer no apoio à empregabilidade de quem precisa, quer na orientação formativa a quem faltam saberes, faz da sigla em questão uma camuflagem para qualquer outro tipo de organização criminosa que tem que funcionar escondida nos meandros do submundo, apresentando-se ao mundo como uma instituição benfeitora a fingir. Faz um tempo que o desemprego me assolou. E faz o mesmo tempo que sou eu que ando a perseguir as técnicas funcionárias da respetiva organização para que elas façam aquilo para que são pagas: apoiar na empregabilidade e/ou dar respostas formativas de acordo com o perfil da pessoa. Como stalker que sou, lá consegui umas respostas. Mas a surrealidade das mesmas, de tão forinha que foram, não tem adjetivação possível. Por isso, fico-me por uma redutora descrição dos factos. Enviaram-me três cartas, que me chegaram ao correio no mesmo dia e que, pela data carimbada, saíram em simultâneo do posto emissor. Primeiro facto: não me enviaram só uma carta porque o conteúdo de cada uma tratava três ofertas de emprego diferentes. Abri cada uma delas com a sensação de que tenho sido injusta e que, afinal, o sistema até funciona. Segundo facto: cada oferta de emprego de cada uma das três cartas correspondia ao desempenho de funções para as quais nunca estudei, tive formação ou, que seja, um dia de experiência profissional. Mas lá me candidatei. Só me chamaram para uma entrevista. As outras entidades empregadoras, depois de terem visto o meu percurso académico e profissional devem ter pensado "os gajos do IEFP estão doidos" ou "porque carga de água é que esta gaja está a candidatar-se para este cargo?". Terceiro facto: a entrevista a que fui ficou em águas de bacalhau. Motivo? Falta de experiência na área. Quarto facto: gastaram dinheiro em papel, envelopes, selos, tinta de impressora, tudo a triplicar, para resultados zero. Aqui a descrição factual inclui uma adjetivação mas visto que é numeral e advinda de uma ciência exata (três ofertas de emprego = zero emprego) está de acordo com as normas.
Como calculo que dos dois seguidores que leem os meus textos, dois já nem estão a ler esta parte, não vou escrever mais nada. É domingo, está sol e estou-me a cagar para isto.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

PIDE - Planeta Interdito a Defensores da Expressão


Só quem anda completamente a leste da realidade é que desconhece que tudo o que aqui é escrito, partilhado, mostrado e explanado nos deixa a descoberto como quem é empurrado para um salão de festas de lobistas em pelota. O Google transforma toda e qualquer informação pessoal, impessoal e relacionada direta ou indiretamente com o sujeito usuário em bases de dados esquematizadas por áreas que perfazem um perfil tão exaustivo da pessoa em questão que, neste momento, posso afirmar convictamente que esses gajos conhecem-me melhor a mim do que os meus próprios pais. E não quero saber. Não cometi nenhum crime (até agora), não vou viver amedrontada com a ideia de que pessoas com poder de decisão vão saber tudo sobre mim sob pena de nunca vir a ser contratada para trabalhar com elas (é sinal que não têm perfil para entrarem na minha vida), recuso-me a deixar de expressar os meus pensamentos e visões sobre o mundo porque defendo com garras e dentes afiados todas as liberdades e acato com paz e serenidade toda e qualquer consequência que possa advir da minha postura na vida. Pouco me importa que o pessoal do Google, para além de voyeurista, seja unha com carne dos grandes detentores dos esquemas pouco transparentes associados aos poderes. Eles usam-me e eu uso-os. Isto de escrever é terapêutico e só me faz bem a mim e aos que me rodeiam. Sem isto eu ia acabar por molestar alguém fisicamente, ia acabar em tribunal e aí sim: estava mesmo tramada. Quer dizer, talvez não. Em Portugal ninguém fica preso mais do que 6 meses. Mas era chato. Perder seis meses da minha preciosa vidinha de vadiagem, recuperação de móveis, desabafos escritos desinteressantes e procura diária de emprego. Pensando melhor, não ia ser assim tão chato. Eram seis meses de férias com oferta de estadia completa. Mas estas são hipóteses remotas porque vou continuar a escrever o que me dá na real gana, sobre tudo o que me apetecer, sobre todos os que quiser referir, evitando ser a provocadora de ossos partidos, cegueira ou qualquer outro tipo de danos físicos em terceiros. Eles que leiam os textos à vontade, que me associem a grupos radicais extremistas e que me incluam na lista de pessoas indesejadas para o sistema. É uma honra. Na altura da PIDE, para não me alargar para fora das fronteiras desta ervilha plantada na cauda da Europa, também existia um controle sistemático sobre a liberdade de expressão dos que não acatavam as palas que se aplicam aos asnos para concentrarem a atenção unilateralmente sem o perigo de a alargarem para novos e "perigosos" caminhos. As consequências nefastas dessa era não eram tão subreptícias como as atuais, havendo confrontos físicos e detenções do corpo. As de hoje provocam acontecimentos subtis o quanto baste para que alguém que conteste e demonstre publicamente o seu inconformismo não se aperceba a curto prazo que o seu descontentamento vai fazer mossa em várias esferas da sua vida. Profissionalmente, ficam queimados - os empregadores são apologistas e acérrimos defensores das palas, valorizando aqueles que também as usam. Pessoalmente, o círculo de amigos e conhecidos começa a desvanecer-se - acham estranho não usarmos palas e Deus lhes livre de estarem associados a tamanha estranheza. Familiarmente, causam desconforto (principalmente aos progenitores) - não entendem como é que a recusa do uso das palas pode ser uma causa tão escudada quando o que fica em jogo é uma integração plena no sistema e nos círculos das pessoas normais. Sexualmente, no caso em que a libertária seja mulher e hétero, fica-se sem parceiro - os homens portugueses não gostam de mulheres muito revolucionárias porque isso subentende um futuro pouco promissor na submissão imperativa para a harmonia de uma família assente em dogmas patriarcais. E depois? Quem é que lava a roupa, engoma, trata dos filhos, aspira, cozinha e ainda tem que trabalhar para o dinheiro dar para os bilhetes dos jogos do benfica? Pois. Eu não sou. E estas mossas podem moer, mas não matam. O que mata é termos que ser quem não somos e vivermos uma vida inteira como os outros esperam que vivamos.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

É a Loucura.


Partindo do princípio que uma lavagem cerebral obedece a uma série de técnicas, ordenadas metodologicamente, baseadas numa persistência de sobrexposição de ideias e ideais por parte de terceiros e dirigidos a um sujeito, numa linha temporal contínua que pode durar semanas, meses ou anos, eu sou louca. As quarenta e duas primaveras que carrego têm sido, desde tenra idade, acompanhadas persistentemente por uma ideia de terceiros sobre a minha pessoa, que se resume a uma adjetivação simples, mas constantemente proferida e ecoada em volumes sonoros altos, médios e baixos por muita gente: "tu és louca". Passo a relatar alguns episódios em que essa composição frásica foi a eleita para me definir enquanto pessoa, tendo acabado por sortir efeito porque agora já acredito que sou louca e assumo-o publicamente.
Tinha cerca de 5 anos e vivia em Moçambique numa terra chamada Montepuez. Era uma aldeia de agricultores onde reinava o plantio de algodão. A minha família já lá estava estabelecida há muitos anos, sendo eu a primeira nada da terceira geração. Vivíamos numa casa com um alpendre que era um dos meus sítios de eleição para ir comer chupa-chupas molhados em água gelada antes de cada lambidela. Como aquilo era uma fonte prazerosa de momentos especiais achei que devia ser partilhada com o máximo de pessoas e comecei a ir à mercearia dos meus avós buscar o máximo de chupa-chupas que as minhas manápulas de cinco anos conseguiam carregar. Depois distribuía-os por todos os miúdos e miúdas que por ali andavam e ficávamos todos sentados no alpendre a molhá-los em copos com água gelada e a lambê-los. Durou durante uma fase. Depois "os crescidos" descobriram e acabaram-se as lambidelas açucaradas. Ralharam comigo e disseram: "Tu és louca! Não podes dar chupa-chupas e copos com água a toda a gente!" Nunca cheguei a perceber o porquê da apelidação do ato como sendo de loucura mas, contrariada, acabei com ele. Passados uns meses resolvi tirar todos os brinquedos que tinha numa casinha tipo anexo e pô-los no mesmo alpendre que acolhia as lambidelas de outros tempos. Achei que não precisava de tantos brinquedos e resolvi distribui-los pelos miúdos e miúdas que outrora molhavam chupa-chupas comigo. Lembro-me da felicidade de um deles a agarrar numa girafa insuflável (que na altura parecia gigante), com um sorriso escancarado ao ponto de se ver a goela. Quando "os crescidos" deram por um anexo vazio de bonecas, bonecos, jogos e girafas repercutiram as mesmas palavras: "Tu és louca! Não podes dar tudo o que tens aos outros!". Os anos passaram e com milhares de soadas equivalentes pelo entremeio, engravidei e informei toda a gente que ia avante com a coisa. Tinha acabado de ser contratada por uma empresa, vivia sozinha e tinha vinte e dois anos. Reuniu-se o comité de emergência familiar e a palavra mais proferida durante o plenário foi: "Louca". Desta vez já não tinha cinco anos e fiz o que quis. Com muitos episódios equivalentes no decorrer do passar do tempo, com namorados a entoar a mesma designação de loucura de que sou portadora, ora porque discutia com eles quando eles me traíam, ora porque os chamava à razão quando estavam a ser injustos, ora porque não admitia que me batessem, ora porque pura e simplesmente chegava à conclusão que eles não tinham nada em comum comigo e acabava a relação, a lavagem estava a afincar-se em mim e, a partir de determinada altura, comecei a pensar que talvez fosse mesmo louca. O processo que se tinha iniciado estava, finalmente, a dar os seus resultados. Então comecei a tentar contrariar essa imagem que eu já estava a criar de mim própria e deixei a profissão a que me tinha dedicado por uns longos e exaustivos 18 anos, decidindo voltar a estudar numa área que sempre me interessou: intervenção comunitária. Toda a gente, sem excepção, disse: "Tu és louca! Ganhas milhares de euros a tentar convencer os outros a comprar coisas e vais sair para aprenderes a ajudar os coitadinhos?!? És louca, só pode!" Mas lá fui eu, a perseguir a minha loucura, convicta que os que me rodeavam é que estavam loucos em acreditar que o ter é mais importante que o ser. Estudei, acabei o curso e mergulhei em voluntariados, projetos de intervenção comunitária, ideais de justiça, solidariedade e equidade. E qual é a palavra que usam para isso? Louca. Sou louca por tentar ajudar os outros, por achar que se fossemos todos assim a vida era muito melhor para todos. Sou louca por gostar que me respeitem e fazer questão de respeitar toda a gente, sejam putas ou mendigos. Sou louca por não gostar de conflitos e tentar encontrar soluções para todos os que não as acham. Sou louca por não dar valor à matéria e estar numa busca constante de alternativas para romper com um sistema debilitado em que quem reina não são as pessoas e sim o dinheiro. Sou louca por gostar mais de vegetais do que de bocados de animais. Sou louca por ter mais prazer em fazer um piquenique do que em ir a um restaurante e pagar 20€ para comer coisas que posso eu fazer por um terço do preço, no meio da relva ou com a areia nos pés. Sou louca porque me revejo no direito de viver com dignidade sem um machista a dar-me ordens, a mal tratar-me e a proibir-me de me vestir como eu gosto. Sou louca porque vejo móveis seculares deitados no lixo e trago-os para casa dando-lhes o protagonismo que merecem. Sou louca porque penso sempre nos outros antes de tomar atitudes que os possam magoar. Sou louca porque não engano ninguém em nenhuma ocasião. Se isso é ser louca, eu sou louca.


terça-feira, 24 de junho de 2014

O Pior Filme do Ano



Das coisas que as pessoas fazem de melhor e só poucos levam à prática são filmes. Um pensamento leva ao outro e está o enredo feito. Alguns têm apetência para o drama, outros para o terror. É conforme. Eu sou mais atreita à comédia. Ou, se calhar, sou fácil de fazer rir e olho para os meus filmes imaginários como verdadeiras odes ao riso. No outro dia deixei-me levar por um guião a agoirar um futuro com poucos ou nenhuns habitantes no berlinde azul. Era um género de "Cast Way", comigo no lugar do Tom Hanks mas sem o côco (gosto de comédia, mas minimamente inteligente). A trama passava-se em Portugal que per si já é uma ilha recôndita, com habitantes desconhecedores de coisas básicas como livros, direitos humanos, política, arte e tudo aquilo que era suposto ser enaltecido num evolucionismo positivo do Homem. A ideia do argumento assaltou-me quando estava a pentear-me ao espelho. Pensei: "se não houvessem escovas para o cabelo, máscaras capilares, champôs hidratantes e tintas de coloração a minha gadelha era uma autêntica selva. Pior: era uma mata ranhosa porque as selvas ainda têm glamour e plantas exóticas. O meu cabelo seria mais do género menina da selva versão macabra - encrespado, com vontade própria para se dar ao luxo de crescer nas direções erradas e com cás espalhadas aleatoriamente sem o charme embutido na ideia de que o grisalho é charmoso. Qual charmoso, qual quê! Com a tez moreno-amarelada que tenho e madeixas grisalhas fundidas com uns fios castanho cocó de origem, ia parecer a madrasta da branca de neve no dia em que lhe entrega a maçã, com a agravante de não estar penteadinha com um rabicho lambido. Depois, passei do cabelo para a cara. Sem os cremes hidratantes, as bases para tapar as imperfeições, o rímel para estender as pestanas ao tamanho da infância e os batons para disfarçar a mirração característica do avançar da idade, a imagem da madrasta da branca de neve despenteada é de uma miss mundo quando comparada com esta triste figura. Isto já para não falar na descomposição hormonal que está em curso e que provoca o aparecimento de pêlos onde uma mulher não os devia ter. E isso, meus amigos, só se trata como se tratam as ervas daninhas: é arrancá-los pela raíz, só que em vez de ser com uma enxada é com uma pinça. Sim, porque a invenção da foto-depilação (como a grande maioria das últimas invenções da humanidade) é só para alguns. Eu não tenho dinheiro para mandar cantar um cego, quanto mais para ir a sessões contínuas de depilação a laser que, mesmo com um custo faseado, saem caras para caramba. O pensamento dos pêlos na cara levou-me instantaneamente para pêlos noutras partes do corpo. Não vai ser preciso fazer uma descrição exaustiva e minuciosa para perceberem que o meu corpo de morena, propenso a raízes capilares fortes em número e espessura iam conquistar cada poro da minha pele. A imagem não é bonita de se imaginar, quanto mais de se escrever. Depois vieram-me as unhas dos pés à ideia. Unhas essas que, por enquanto, ainda podem ser assim apelidadas, porque (não sei se sabem), com a idade, essas lâminas córneas que revestem a extremidade dorsal dos dedos transformam-se em cascos com camadas exauridamente sobrepostas, equivalentes aos dos paquidermes e ruminantes, acumulando uma textura e espessura que só se desbastam com alicates de corte para metal. Até agora, só a descrição física da protagonista do filme - eu - já seria um garante para nomeação do pior filme cómico do ano. E dei-me por satisfeita. Antes falarem mal do que não falarem. Nesse dia, dei a trama por findada e lembrei-me de ter tido uma conversa com o meu irmão sobre a herança genética. Ainda hoje nos perguntamos como é que com um pai e uma mãe lindos de morrer como são, saímos assim. E, agora com descendentes diretos que são a personificação da beleza, a questão ainda se eleva a um patamar mais elaborado chegando a atingir níveis de insanidade que ainda hoje me fazem ir a correr para o espelho só para ter a certeza que não sou eu que ando a ver mal. E a fazer filmes, claro.

domingo, 22 de junho de 2014

Na Boa Vai Ela


O vagueio domingueiro matinal pelas ruas da cidade, mesmo que propenso a doenças advindas de um ar saturado de poluentes nocivos, só traz benefícios.

Primeiro, encontramos objetos abandonados por companheiros de uma vida que se renderam à facilidade numeral tangível dos móveis de auto-montagem. Esses encontros são quase poéticos: uma quarentona sozinha, assaz defensora do decrescimento da matéria e, por isso, adepta da reciclagem e reutilização, encontra cadeira sexagenária sem-abrigo com o costado mal tratado. Junta-se a fome com a vontade de comer e lá vai a quarentona de cadeira às costas, para ser reabilitada, curada e mimada até voltar a brilhar.
Segundo, as probabilidades de encontrarmos amigos ou conhecidos eleva-se ao expoente médio, porque a matina do dia da missa de outras gerações é o equivalente a prolongamentos causados por empates de levantamentos de copos de sábado à noite da minha geração. É divertido estar com a espertina e a lucidez de uma noite bem dormida e depararmo-nos com a fase ante-coma do pessoal. Tentam sempre levar-nos a beber um copo como se a tarefa de entrarmos no mesmo nível de embriaguez por dá cá aquela palha fosse possível de concretizar. Quando se apercebem que tal desejo nunca vai atingir o patamar do realismo, desistem de tentar e, ao mesmo tempo, como que por milagre, dá-se um estranho fenómeno: ficam todos caretas, como se o etílico ganhasse asas e voasse para fora dos seus corpos. É sempre um grande corte encontrar alguém que se conhece que não esteja a andar aos esses ou a falar com a língua encaracolada. É um murro no estômago e, de repente, entram todos no modo automático do "tenho que ir para casa dormir". Para eles é chato, mas para quem assiste (para os cortes) é cómico. 
Outro benefício de andar, neste caso no centro histórico de uma cidade apelidada de urbe das sete colinas, é a quase imediata tonificação dos glúteos e de outras partes do corpo que, com o passar dos anos, deixam de reagir à vontade passando a obedecer cegamente e com um conformismo desinquietante à lei da gravidade (com a idade todos os músculos vão perdendo o espírito revolucionário, redimindo-se a leis e regras inventadas por terceiros - até o cérebro).
Um quarto ganho destes andamentos é a aprendizagem sociológica informal que podemos desenvolver. A homossexualidade saiu definitivamente do armário e ainda bem que assim foi. Com este grito do Ipiranga da inclinação sexual das pessoas, não só a liberdade ganha pontos, como todos sabemos à priori com o que podemos contar. Se avistarmos um espécime bem parecido e com cara de quem tem meio palmo de testa, basta olhar para o que traz agarrado à mão. Se for outro gajo tiramos daí o sentido e seguimos em frente sem perder um milésimo de segundo a matutar nos "se" que daí poderiam advir. Para além disso, valorizo a transparência nas pessoas. É menos mau ser enganada do que ir ao engano. 
A quinta mais valia de andar a penantes é o regresso a casa. Com o carregamento dos móveis resgatados, tonificamos ainda mais os glúteos, os bícepes, os gémeos e todos os seiscentos e tal bocados de carne que compõem parte do nosso corpo, dando cabo de uma boa percentagem da camada adiposa que teima em colar-se a nós num crescendo paralelo ao passar dos anos. Depois, adotamos um sorriso aparvalhado a pensar nos amigos etilizados e ficamos contentes por saber que eles ainda estão vivos mesmo ao fim de vinte e tal anos a sufragar a borga. Por fim, chegamos a casa sem alguém para nos dizer o que fazer e como fazer e quando fazer. É tão bom.

sábado, 21 de junho de 2014

O jogo do contrário - Capítulo II

Neste bonito dia de um verão pré-anunciado por raios de sol luminosos e sem nuvens no céu, apetece sair e laurear a pevide por essas ruas afora com um sorriso na cara, acolhendo a simpatia dos pares que dedicam a vida a meditar sobre o bem-estar dos outros e a arranjar mecanismos para garante de um mundo harmonioso, equilibrado, pacífico e solidário. Adoro as pessoas. São a melhor invenção do universo. Sem elas, o planeta não teria safa possível e ia acabar por extinguir-se. O mar não ia ser um espaço viável para habitat de corais, espécies raras submarinas, nem para acolher banhos de praia e ecossistemas funcionais. As florestas não iam sobreviver, perdendo per si espécimes vegetativos seculares, animais incomuns e capacidade na propagação de filtragem de matérias nocivas existentes no ar. Os campos iriam auto.produzir químicos corrosivos para o plantio, pondo em causa a sustentabilidade dos produtos que providenciam a alimentação da humanidade e iriam auto-mutilar-se com a criação espontânea de espécies transgénicas geradoras de cancros e doenças genéticas irreversíveis. O ar que respiramos não seria tão limpo e as pessoas e todos os seres vivos iriam começar a ter problemas de saúde agravados, quer no aparelho respiratório quer em todos os organismos que mantêm a vida dos mesmos com um grau de qualidade elevado e saudável. Ainda bem que o ser humano tem uma consciência avançada capaz de prover tudo o que é necessário para o equilíbrio da vida no planeta terra. Esta paz em que vivemos por termos a segurança de que fazemos parte de uma civilização tão desenvolvida espiritualmente baseada em sistemas de autogestão, solidariedade, compaixão e entreajuda faz de nós uma espécie sem igual. Agora, por exemplo, tenho que ir dar o meu primeiro contributo do dia para a manutenção deste sistema de vida perfeito: deslocar-me a um prédio vizinho, recolher o caixote do lixo da rua para os habitantes desse fogo terem menos dificuldade em despejar os detritos que produzem, sem terem que sair de casa para o efeito. É que o caixote do lixo é um paralelipípedo verde, com rodas, e tem que ser retirado todos os fins de dia para o passeio de modo a que as pessoas que recolhem os seus conteúdos o tenham mais à mão. Mas como os habitantes do prédio não gostam de fazer isso, faço eu. Depois, pela manhã, volto a colocá-lo no seu retiro e assim os seus donos não têm que passar pela dificuldade angustiante de porem os pés do lado de fora da entrada das suas casas para se livrarem dos despejos daquilo que vão consumindo ao londo do dia. É que é uma situação deveras constrangedora, essa de abrir a porta para deitar fora aquilo que já não se quer ou que já não serve para nada. Houve um dia em que não pude ajudá-los nesta missão humanitária. Tive que ir fazer uns exames médicos e não cheguei a horas. O pobre do caixote verde com rodas passou o dia a céu aberto, à mercê das intempéries. Mas, quando cheguei, fui tratar do assunto e os pobres dos habitantes do prédio, que devem ter ficado tão desnorteados (coitados), tinham deixado todos os sacos do lixo no chão do hall de entrada do prédio. Devem ter entrado em pânico por não verem o caixote que está sempre ali, naquele cantinho, acolhido e à espera de receber o esbulho de cada um. Nesse dia senti-me mal. Culpada e preocupada. Não tinha conseguido contribuir eficazmente para a harmonia comunitária em que vivo, tendo provocado desiquilíbrio e irritabilidade desnecessários nos outros. Contudo, foi só um episódio sem exemplo. Bem, está na hora de ir. Não posso falhar a tão árdua tarefa que me foi incumbida por um contributo mensal exageradamente inflacionado de 20€. Só por isso, eles merecem tudo de mim.  

quinta-feira, 19 de junho de 2014

O jogo do contrário - Capítulo I

Jogar e brincar ainda é grátis. Posto isto, vamos a isso.
Um dos jogos mais simples, divertidos e que provoca um número exuberante de produção de endorfinas é o jogo do contrário. Dizermos tudo ao contrário daquilo que achamos, queremos ou fazemos, para além de não se tratar de uma ciência complexa, faz gargalhar até à lágrima. Como hoje paira no ar uma vontade de provocar o riso, sem ter que passar pelo cúmulo de fazer cócegas a mim própria, vou escrever conteúdos opostos das minhas desinteressantes considerações sobre o mundo.
Por exemplo, acho perfeitamente razoável que a eletricidade em Portugal seja a mais cara da Europa. Tem que ser, para os acionistas das empresas que exploram a dita cuja ganharem muito dinheiro. Acho justo, apropriado e acredito que eles merecem ter muita riqueza nas suas contas offshore com o dinheiro das pessoas que labutam para sobreviver. As pessoas que labutam são seres inferiores que não se esforçaram para ser alguém importante na vida e acumular riqueza material de maneira a comprarem um bom carro, várias casas, roupa de marca, perfumes caros, cirurgias plásticas, aviões a jato e tudo o que de melhor há nesta vida. Essas pessoas não têm ambições, por isso merecem ser castigadas pelas outras (superiores) que toda a vida pensaram em grande, estudaram técnicas muito elaboradas de conseguir enriquecer e tiveram a esperteza de se intrusar com aquelas que já eram mestres nessa arte há muitos anos - verdadeiros sábios anciães que dedicaram toda uma vida a lobbies e favores em cadeia, mas só nos círculos restritos dos iluminados. 
Outra coisa que tenho que tornar pública dando a conhecer aos meus milhares de seguidores é que hoje descobri que a Junta de Freguesia da área da minha residência funciona muito melhor do que qualquer outra. Para além de eu morar nesta zona há relativamente pouco tempo, tive a prova provada de que isso é uma verdade incontestável. Como desempregada (e inferior) que sou, fui lá fazer a apresentação quinzenal que existe para nos fazer lembrar que somos da classe inferior, que vive dos subsídios e dos apoios dos superiores, que são uns pios em ainda nos ajudarem a ter algum dinheiro no bolso durante um ou dois dias por mês. Mas adiante, as senhoras do atendimento da Junta de Freguesia, simpáticas, luminosas e muito prestáveis, fizeram o favor de me carimbar o papel do controle quinzenal e, depois do bondoso e altruísta ato de me darem outro papel com a nova data, ainda ouviram um pedido que tinha para lhes fazer. Imaginem só a caridade desta gente exemplar. Eu tive a ousadia de pedir para colocar um cartaz, dirigido a todos os inferiores que para aí andam, sem capacidade para arranjar um emprego que seja, com a informação e contatos de grupos de entreajuda para pessoas como nós. As senhoras olharam para o cartaz, com um olhar bondoso e caritativo e disseram: "Para colocar coisas dessas no nosso painel de cortiça, tem que pagar 10€.". Eu fiquei para morrer. Não tinha 10€ para poder ter a honra de colocar o cartaz no magnífico painel de cortiça da melhor Junta de Freguesia do mundo. Embaraçada, curvei-me e disse: 
"MAS VOCÊS ESTÃO TODOS DOIDOS OU QUÊ?!? ISTO É UM CARTAZ PARA AJUDAR AS PESSOAS QUE NÃO CONSEGUEM ARRANJAR EMPREGO. OU SEJA, PARA DESEMPREGADOS!!! E AS JUNTAS DE FREGUESIA, SUPOSTAMENTE, SÃO AS REPRESENTANTES LOCAIS DAS PESSOAS E SERVEM PARA AS AJUDAR!!!! TER QUE PAGAR PARA USAR UMA MERDA DUM PAINEL DE CORTIÇA DUM ESPAÇO QUE É NOSSO????"
Pronto. Perdi o jogo! Não consegui controlar-me. Só por isso, agora fico uma vez sem jogar.  

terça-feira, 17 de junho de 2014

Antecipação de um exame custoso

A história começou há uns meses atrás quando fui a uma consulta à médica de família. O que pelo intermédio aconteceu não interessa nada - um rol de burocracias, papeladas, idas e vindas, mudanças de códigos da requisição, mudança de requisição, etc. Para quê? Para duas coisas: a primeira, lavar o aparelho gastrointestinal; a segunda, fazer uma colonoscopia. Já muitos passaram por esta experimentação física que, de tão agonizante, dá vontade de rir às bandeiras despregadas. É que o propósito da coisa é limpar a porcaria para que os "sô dôtores" possam espreitar cá para dentro como se entrassem num hall de casa desinfetado por um mordomo obsessivo-compulsivo que usa algodão para verificar se restou algum miligrama de merda. Esta água barrenta, com sabor a esgoto mas com uma aparência enganadora de lagoa azul transparente, faz mal à saúde. A tarde foi de vómitos, com calafrios, nós no estômago e língua alixada. Horas a fio a assistir aos banquetes elaborados pelos compinchas cá de casa sem poder ingerir uma migalha que fosse a não ser o preparado com nome de lixívia tradicional. Idas à casa de banho com agoiros de momentos dolorosos sem a concretização do ato. E, por fim, ao início da terceira litrosa da mistela, dá-se a ordem de soltura daquilo que ninguém quer ver, cheirar, provar ou verbalizar: cocó. Cocó a jorro. Em abundância. Até se desmaterializar da forma fálica pela qual é universalmente conhecido e tornar-se numa aguada singela mas matreira capaz de enganar os intestinos mais sabidos, com escapadelas infinitas pelas portas das traseiras (leia-se traseiro s.f.f.). Agora, com o relógio a avisar-me que daqui a umas horas a coisa vai inverter-se e que o que hoje saiu, amanhã vai entrar mas com novas formas, cores diferentes e matéria-prima produzida pela mão do homem, vou dormir com um alívio grande da cintura para baixo e um medo de peso do pescoço para cima.
Era tão bom que houvesse um preparado equivalente para o cérebro das pessoas.