sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Inspira. Conspira.


A panóplia de informação a que faço questão de sujeitar o meu cérebro diariamente, leva a cruzamentos consecutivos de conteúdos que, por sua vez, se traduzem em teorizações muito pouco ortodoxas no que respeita à ciência exata levada à risca pelos fundamentalistas da retórica teorizada, provada e comprovada por metodologias académicas exploradas secularmente pela égide das mentes mais propensas à genialidade. Mas, ao mesmo tempo, esta quebra de regras, consegue apropriar-se de uma liberdade criativa de extrema soltura que desemboca numa realidade paralela, fantasiada (ou não) que me faz bradar o riso e consequentemente elevar o estado de alma ao pasmo do prazer esquivando-me do aborrecimento de ter que sujeitar o corpo à morosa lascividade da carne. Sendo o epicentro do êxtase o próprio do cérebro nada melhor do que o inundar de estímulos e preliminares que atalhem diretamente até ao objectivo proposto. Estava no outro dia a ler sobre a desigualdade do género em Portugal quando me deparei com o que já todos sabemos mas que poucos discutem: até 2097 as mulheres vão sofrer na pele a teima cultural da sociedade patriarcal em que vivemos. Maiores graus académicos mas menos posições nos quadros superiores, maiores em número mas mais desempregadas, boas no desempenho de funções similares ao sexo oposto mas com remunerações abaixo dele. Depois, no mesmo dia mas à tarde, deparo-me com um estudo levado a cabo por um grupo de cientistas japoneses que percorreu uma prolongada linha temporal de décadas para concluir que cada vez nascem menos homens. O estudo aponta o principal motivo da baixa de natalidade de indivíduos do sexo masculino como sendo o das alterações climáticas. As sinapses que carrego começam automaticamente a embrenhar-se e criam uma teoria: as mulheres só vão poder usufruir do estatuto de igualdade do género no ano de 2097 porque em 2097 já não vão existir homens. Uma. Outra: as notícias reveladoras de desvios económicos diários são uma realidade desde os contextos micro-económicos locais (juntas de freguesias, câmaras e afins), passando por espaços de poderio dominante no que respeita à moeda (bancos, privadas, offshores, etc,) chegando até aos mundos macro-económicos do planeta (fusões, países, governos, agências especuladoras, etc). Quando me deparo com uma outra reveladora e assustadora notícia sobre um aumento insustentável da população mundial, que sublinha a traço cada vez mais vincado a diminuta possibilidade de salvar os recursos naturais do planeta, volta a acontecer o fenómeno da teorização impulsiva desmembrada do consciente e racional: os sistemas micro, macro e capitalistas são bons. No fundo eles estão a tirar dinheiro à população para salvarem o planeta de uma morte anunciada, travando a disponibilidade financeira para a procriação da espécie, salvaguardando, desta maneira, os recursos naturais e, consequentemente, mantendo o garante para a continuação da vida tal como ela é hoje. Mais uma: a Europa está conseguir atingir alguma estabilidade mas os EUA estão a ficar incomodados porque o dólar não pode valer menos do que o euro. Aviões caça russos andam a sobrevoar a Europa. Quem são os senhores da guerra? Os EUA. Teoria: a américa do norte, para manter o estatuto de grande e primeira grande potência decide vender arsenal mais sofisticado à Rússia. É como um puto mimado que está na praia com duas raquetes, mas como é parvo e ninguém brinca com ele, decide arranjar um esquema: vende uma das raquetes a outro puto mimado movido a superficialidades que depois vai ter forçosamente que jogar com o manipulador. Juntam-se os dois, só que o segundo puto (a Rússia) ainda não domina bem a raquete porque é um brinquedo novo e atira a bola para onde não era suposto. Isto (caso não tenha conseguido ser explícita) corresponde aos pilotos da força aérea russa - pegam nos caça novos e sofisticados, mas como não os sabem pilotar, enganam-se nas rotas e vêm parar a Portugal. De onde vêm estas teorias há mais, mas por agora ficam guardadas na caixa encefálica porque é suposto haver um princípio, um meio e um fim, mas eu reservo-me ao direito de ficar no meio. 

domingo, 19 de outubro de 2014

Despessoa


Naquele dia descobri a cor da dor.
Vesti-me de preto.
Podia haver quem me lesse.
Até hoje é luto.
Não há quem me branqueie.
E continua o silêncio.
Com o livro fechado, embolorado, decomposto, mofado, escuro.
Antes descobri o preço do amor.
Dei tudo o que tinha.
Mas não chegou.
Não tinha o que chegasse.
Fiquei sem nada.
Depois quis agarrar a força.
Dei-me o vermelho.
Mas a cor esbateu-se.
Absorveu-se.
Esgueirou-se.
Esmoreceu-se.
A palidez ferrou-se.
Numa hora chegou a raiva.
O fogo ateou.
A besta rasgou, partiu, chacinou, devorou, destruiu, apagou.
Sou de preto.
De palidez vincada. 
De raiva adormecida.
De apatia nas veias.
De mangas compridas.
De alma tapada, enterrada, sustida.




quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A viagem


Sentiu o que se sente num mar de gente que não sente.
Correu apedrejada por mãos de olhos sem vista.
Lutou com lances de flores contra flechas em espinhos.
Ficou de pedra e cal para almas sem sangue nas veias.
Foi quente tal lava expelida caída no gelo do norte.
Entrou de pernas cansadas nos corpos com portas trancadas.
Entregou o riso aberto às nuvens que caem no chão.
Não soube ganhar um dia na vida que os dá aos primeiros.
Levou o peso do monte poupando a encosta de pedra.
Molhou de gotas salgadas a roupa enrugada herdada.
Enxotou as gotas da cara com as mangas da seda a estrear.
Fugiu de costas viradas para a rua com saída.
Parou no tempo da dor pela ausência de um braço de anzol.
Dormiu agarrada aos nadas que fingiram ser alguém.
Sonhou um segundo por ano em anos que não tinham minutos.
Morreu de olhos abertos com o coração a pulsar.
E agora anda morta. Por aí.









domingo, 12 de outubro de 2014

Eu. Falada Por Mim.


Dizem que falar dos outros é mesquinhez, que falar de nós próprios é pequenez e que falar de pensamentos e/ou ideias é inteligência. Só concordo com a primeira. Porque pensarmos em nós próprios é importante. Tentarmos transpor a barreira de nós mesmos e olharmo-nos de fora é imperativo não só para melhorarmos o que não temos de tão bom, como também para mantermos ou aperfeiçoarmos aquilo que achamos estar bem. Obviamente que pensarmos só em nós é redutor ou, pior, narcisista. Mas de vez em quando todos devíamos fazer este exercício mental que também se inclui na demanda dos pensamentos e/ou ideias e que, por esse mesmo motivo, também se pode considerar um ato inteligente. Cá para mim eu sou uma pessoa como outra qualquer - com feitos e defeitos. Mas quero revelar mais coisas que poucos ou nenhuns sabem sobre a minha pessoa. E porquê? Para travar a mesquinhice de quem quer que seja que pense em mim como eu não sou e que caia consequentemente na tentação de falar de mim na minha ausência com base em pressupostos que não abraçam a realidade. Gosto da ideia de mulher lutadora e isso leva-me a tentar sê-lo. Recuso-me a ser uma coitadinha e luto todos os dias para ultrapassar barreiras pessoais, para evitar ser injusta, para alertar os injustos, para ser independente. Aliás eu não sou só independente: sou uma solitária. Nunca fiz parte de grupos nem nunca os papei. Gosto de muitas pessoas de vários géneros e feitios. O que me importa é que tenham o lado bom muito mais evidenciado do que o mau. Mas não vou em balelas. Não me interessam ditos. Interessam-me feitos. As palavras deviam ser mais respeitadas. Usadas com tino e cuidado, com correspondências à medida dos atos. Elas (as palavras) deviam ser uma extensão real daquilo que somos na verdade. Não suporto mentiras. Basta uma para deixar de acreditar para sempre. Gosto de viver na verdade, mesmo que seja cruel. Assim sei com o que posso contar e a partir dessa ideia o que quero fazer. Sou de esquerda. A direita dá-me arrepios pelas ideias subjacentes à matéria sobreposta às pessoas e à frieza geradora de muitas desigualdades e injustiças. A esquerda é mais justa e humana e fomenta os valores e ideais em que gosto de viver e com que gosto de conviver. As pessoas de direita dizem que todos os governos de esquerda foram tão cruéis como os seus. Pode ter havido um ou outro caso em que isso corresponde à verdade, concordo. Mas aquilo em que eu acredito é nas ideias de pessoas que tinham e têm um génio bom. Talvez essas nunca se proponham ao poder e talvez seja esse o motivo que me leva a afirmar-me acrata. Porque a história demonstra com provas provadas que aqueles e aquelas que se propõem ao poder já levam consigo uma antagonia impeditiva de atos nobres e justos. O querer estar acima de alguém pressupõe a inferioridade de muitos o que por si já é uma injustiça. Nunca vou deixar de acreditar nos meus ideais mesmo que a maioria os apelide de utopias. Sei que já não vou assistir a uma mudança real generalizada que vá ao encontro das minhas crenças, mas também sei que se desistir delas elas morrem mais um pedaço. Enquanto houver pensamentos utópicos existe a possibilidade deles se transformarem em verdades reais. Também acredito no amor. O tempo tornou-me numa pessoa mais fria e menos romântica, mas acredito no amor porque já o senti. E não me considero uma pessoa fácil de agradar. Regojizem-se os homens que já me tiveram - gostei de todos a sério. Não estou com alguém por estar. Esse alguém tem que significar muito para mim, mesmo que a duração desse significado seja de pouca dura. Sou exigente, mas só exijo os mínimos que, pelo que me tenho apercebido, para a maioria são os máximos: integridade, maturidade, fidelidade, verdade, justiça, amizade, companheirismo, entrega. Para mim estas são as bases essenciais que servem de acesso ao meu foro privado. Adoro ver filmes. Tenho todos os sinais de nascença do meu lado esquerdo do corpo, desde a cara até ao pé. Já se agourava a minha preferência política - nasci marcada para isso. Das centenas ou milhares de pessoas que conheci pessoalmente só odeio três: dois ex-diretores criativos que tive e um ex-namorado. Fizeram-me mal à alma, ao corpo e a tudo. Marcaram-me negativamente para sempre sem eu merecer (aliás, ninguém merece), considerando-os por esse motivo más pessoas. No trabalho sou profissional e como considero que se trata de um acordo entre duas partes, dou o meu melhor até ao dia em que algum superior hierárquico falhe esse acordo. O autoritarismo não funciona comigo em nenhuma esfera da vida e contesto a atual falha humanitária que deitou ao chão todos os direitos dos trabalhadores, dos amantes, dos amigos, da família. Acima de tudo devíamos ser pessoas e respeitarmo-nos sempre em qualquer circunstância. Gostava de poder andar de saltos altos de vez em quando. Mas como ando sempre a pé e para dificultar mais a marcha fui atropelada há uns anos, deixo-me ficar por sapatões e abotinados rasos. Tenho os cabelos todos brancos desde há 2 anos a esta parte, mas pinto-os porque não gosto de me ver com as cás que me amarelecem a tez e fazem de mim quem não sou por dentro. Tenho as mamas e a barriga com cicatrizes das duas gravidezes que vivi. São partes do corpo estragadas, mas por uma boa causa. A última gravidez foi sofrida porque perdi a bebé quase aos seis meses de gestação.Chamava-se Estrela. Não gosto de discotecas. Nunca foram o meu forte. Adoro dançar, mas em concertos de música que posso escolher e que normalmente duram uma ou duas horas o que pressupõe que não estou muito tempo num ambiente em que não consigo comunicar com os amigos. Adoro música a que as massas apelidam de pesada. É a música que passa mais mensagens de rebelião e que transporta consigo uma conotação de inconformismo social, político, religioso, etc. Desde muito nova que a oiço e deve ser por isso que o meu aparelho auditivo e o meu coração se sentem tão reconfortados com ela. O punk, hardcore, metal, rock, etc. são os géneros que me acompanham desde tenra idade até os dias de hoje. Cheguei a experimentar a eletrónica, mas considero-me uma inadaptada nesse contexto. Fico incomodada e mal-disposta com música que não tem, pelo menos, uma guitarra e uma bateria. Sinto-me mais feliz quando faço desporto. Recuso-me a inscrever-me num ginásio, mas já sou capaz de pagar por uma aula de yoga. Faço jogging, caminhadas e não é por uma questão estética. É por uma questão de resistência mental e de equilíbrio emocional. Adoro mexer na terra e o meu sonho é poder viver num sítio que me permita fazê-lo. Quero acabar os meus dias numa casa (pequena) auto-sustentável com terra de cultivo para a minha subsistência. Não como carne. Já tentei e não consigo - sabe-me mal e faz-me impressão. Mas, curiosamente, adoro peixe. Ele e os vegetais são obrigatórios na minha ementa. Considero-me uma pessoa cheia de defeitos quer a nível físico, quer a nível da personalidade. Para as melhorias físicas já não invisto muito tempo a não ser no essencial. Gosto das pessoas que têm a coragem de me falar nos meus defeitos com gentileza. E gosto de pessoas que gostam de outras pelo seu interior. Eu também passo a vida a apaixonar-me por interiores o que não significa que não me sinta bem sozinha. Antes pelo contrário: tenho o defeito de fazer questão de estar sozinha. Deve ser a minha estratégia para não atingir o ponto de desilusão e consequente ponto de ruptura. Sofro com as desilusões e para isso já basta o que já vivi. Esta sou eu. Quem gosta, gosta. Quem não gosta, não gosta. Vivo bem a ser quem sou mesmo que não seja o que os outros esperam de mim. Faço questão de viver a minha verdade, seja ela cruel, inconveniente ou mal olhada. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Escrever Direito Por Linhas Tortas

Ultimamente tem-me vindo à cabeça a ideia, várias vezes insinuada pela minha avó, que devemos ouvir o que o povo diz através dos ditados. A sabedoria popular era para ela uma verdadeira aula de conselhos sabidos por quem os viveu ao longo de séculos e que, com base na experiência adquirida,  foram ficando em jeito de aviso. E depois ainda temos a mais valia de podermos escolher qual deles se adapta melhor ao momento. É que para uma única ideia existem várias expressões idiomáticas sendo por isso quase certo que pelo menos uma delas se vai moldar à lição que aprendemos ou à fase que atravessamos. Por exemplo, quando alguém nos mente. Consoante a situação podemos usar a velha máxima "apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo". Contudo se o mentiroso for coxo a ideia do manqueio sobrepõe-se à da mentira e deixa de sortir o efeito desejado. Mas há sempre alternativa - "Mentes com todos os dentes que tens na boca" - aqui corremos o risco de estarmos a dirigir-nos a alguém sem dentes ou com poucos exemplares vivos da dentadura de origem o que também deita por terra a intenção. Contudo, como era preciso ter muito, muito azar para que o mentiroso em questão fosse coxo e desdentado ao mesmo tempo, uma delas serve o carapuço na certa. Continuando na mesma temática podemos ir ainda buscar a frase "a mentira tem pernas curtas". Neste caso, mesmo que o mentiroso seja desproporcional às medidas standard dos membros inferiores, nós só estamos a categorizar a mentira em si e não o seu portador. É óbvio que se estivermos a dirigir-nos a um anão a coisa não cai tão bem, mas as hipóteses de se dar o caso são de uma num bilião o que também deixa a validação da mesma num grau positivamente satisfatório. Vejamos outro exemplar que pode ser adaptado a uma situação em que a mentira coexiste com o momento: "pela boca morre o peixe". À primeira vista esta é de todas a mais inofensiva e a mais universalmente adaptável. Só num remoto e inabitual acaso é que iríamos estar de frente a falar com uma solha ou um pargo, para além de mesmo assim haver em Portugal apelidos de pessoas que pertencem à fauna marítima: Peixinho, Robalo, etc. Mas não há motivos para apoquentamentos. A grande maioria dos apelidos portugueses é de outros animais (Coelho, Carneiro, Raposo, Pinto, Carrapato, Leitão, Periquito, etc.). Também podemos escolher a expressão popular com base na estação do ano em que vivemos a experiência, como por exemplo "estás a enfiar-me o barrete". Se isto for dito no inverno até se torna uma acusação acolhedora e de certa maneira aconchegante. Alguém nos mente e nós fazemos um paralelismo de aquecimento reconfortante numa época do ano em que está um frio de rachar. É simpático sermos simpáticos para os outros mesmo quando eles demonstram ser uns pulhas para nós. Mas se for Inverno e nós estivermos perante uma pessoa com tendências depressivas graves já fica de fora a frase "apanhei-te com a boca na botija". Aqui podemos substituí-la por "apanhei-te com as calças na mão". Cai melhor, convenhamos, pelo menos simbolicamente. Só com o exemplo da mentira podemos ver que o universo das deixas populares é rico em verdades e devíamos ouvi-lo com esmero, respeito e atenção. O povo é quem mais ordena no que respeita à experiência de vida e desenvolvimento de competências no conhecimento do próprio comportamento das pessoas. Há que aceitar esta dádiva herdada dos nossos antepassados de bom grado. Até porque a cavalo dado não se olha o dente e de um livro fechado não sai letrado 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Anti-sistema

Quando me ponho a pensar porque carga de água é que sempre fui uma inconformada ao ponto de me rebeliar desde tenra idade contra pressupostos impostos que não correspondem ao que considero justo ou capacitante do bem estar das pessoas, fico a marinar na ideia de que existem vários motivos explícitos que marcaram algumas etapas do meu crescimento, contribuindo para o encastramento desse traço na minha personalidade. Contudo há um motivo que se evidencia pelo seu cariz peculiar de agir coagindo sobre pessoas numa idade em que as personalidades se começam a afincar e que, normalmente, só podem bifurcar num dos seguintes sentidos: aceitação ou inconformismo. Eu segui pelo segundo caminho, ainda sem ter o sentido real de que o primeiro é o preferido da maioria. Por volta dos dez anos de idade os meus progenitores, com as melhores das intenções advindas do fator de estranheza da imigração para o novo mundo a que viemos parar e que os levava a sentir o medo inerente ao desconhecido, inscreveram-me num colégio privado com categorização de externo. Sem dormidas, mas moldado ao sistema de qualquer colégio privado que se propõe a esculpir as cabeças dos seus frequentadores por igual (como a maioria das organizações que se prestam a educar). Os meus primeiros anos de internamento externo foram de alguma quietude, não havendo episódios de rebeldia contra a organização tiranizada da coisa ou contra as metodologias subliminarmente lobotómicas adotadas. Mas lembro-me que essa calmia estava colada a uma continuada sensação de nó no estomago e de boca insalivada o que na altura me dava um grande desconforto não só físico mas também emocional. É o que agora sei que se designa por medo. Aquela gente metia-me medo. O diretor, de seu nome Fernando, era simultaneamente professor de matemática e de físico-química. A diretora, de seu nome Fernanda, casada com o diretor, acumulava igualmente a função de leccionar a disciplina de história. Os dois tinham dois filhos - um casal - ele, de seu nome Fernando; ela, de seu nome Fernanda. Os pais da família dos Nandos, aquando o desempenho das suas funções como diretores do externato, dividiam a escola em dois. De um lado os rapazes, do outro as raparigas. Os recreios eram duplicados em dois pátios, sem avistamento possível de um para o outro. Quando assoava a campainha de entrada, as raparigas esperavam pelo respetivo docente dentro da sala, enquanto os rapazes aguardavam no corredor, sem possibilidade de contato com o sexo oposto. Se por um mero acaso alguma das meninas amortalhadas numa das batas axadrezadas esmiuçasse qualquer aproximação a um dos do grupo do fruto proibido, estava sujeita a um castigo que podia ir de canastradas com a força de partir botões da tal bata, até ao chamamento formal dos encarregados de educação à direção. Com o passar do tempo fui percepcionando este conceito com um sentido crítico cada vez mais difícil de guardar em mim, começando a exteriorizar o meu descontentamento num crescendo proporcional ao meu próprio crescimento. O pior é que parecia ser uma luta inglória porque logo de antemão os seguidores deste sistema tiranizado e castrador eram a maioria, estando neles incluídos um número significativo de encarregados de educação, pessoas da comunidade, alunos e professores. Havia um ou outro vislumbre de contra-corrente, mas esses exemplares eram sempre em número demasiado pequeno para gerar uma mudança passível de ser considerada fenómeno sociológico. Esta fase da minha vida marcou-me negativamente (mesmo tendo sido uma alavanca para o apuramento da minha consciencialização) ao ponto de até à minha fase adulta me recusar a dirigir palavra aos diretores do dito externato quando me cruzava com eles na rua ou outro lugar qualquer. Quando olho para trás parece que estou a olhar para o agora. A persistência dos costumes e normas que comportam um esmagamento do outro em prol da vontade unilateral dos detentores do poder parece feita de pedra e cal, coexistindo com o mundo com a maior das normalidades para a maioria, sem nunca ser questionada, referida, contestada ou contrafeita. Felizmente todos os pedaços que constituem o meu passado e que me tornam naquilo que eu sou hoje fazem de mim uma contestatária profissional inconformada e proclamadora de ideias anti-sistema. Porque o sistema - "o conjunto de elementos, entre os quais há uma relação, disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si e que formam uma estrutura organizada" - está inequivocamente corrompido e por isso corrói-nos a alma, esmagando o nossa verdade com camisas de forças para o espírito. E disso eu recuso-me a fazer parte, doa a quem doer (incluindo a mim própria).