quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Anti-sistema

Quando me ponho a pensar porque carga de água é que sempre fui uma inconformada ao ponto de me rebeliar desde tenra idade contra pressupostos impostos que não correspondem ao que considero justo ou capacitante do bem estar das pessoas, fico a marinar na ideia de que existem vários motivos explícitos que marcaram algumas etapas do meu crescimento, contribuindo para o encastramento desse traço na minha personalidade. Contudo há um motivo que se evidencia pelo seu cariz peculiar de agir coagindo sobre pessoas numa idade em que as personalidades se começam a afincar e que, normalmente, só podem bifurcar num dos seguintes sentidos: aceitação ou inconformismo. Eu segui pelo segundo caminho, ainda sem ter o sentido real de que o primeiro é o preferido da maioria. Por volta dos dez anos de idade os meus progenitores, com as melhores das intenções advindas do fator de estranheza da imigração para o novo mundo a que viemos parar e que os levava a sentir o medo inerente ao desconhecido, inscreveram-me num colégio privado com categorização de externo. Sem dormidas, mas moldado ao sistema de qualquer colégio privado que se propõe a esculpir as cabeças dos seus frequentadores por igual (como a maioria das organizações que se prestam a educar). Os meus primeiros anos de internamento externo foram de alguma quietude, não havendo episódios de rebeldia contra a organização tiranizada da coisa ou contra as metodologias subliminarmente lobotómicas adotadas. Mas lembro-me que essa calmia estava colada a uma continuada sensação de nó no estomago e de boca insalivada o que na altura me dava um grande desconforto não só físico mas também emocional. É o que agora sei que se designa por medo. Aquela gente metia-me medo. O diretor, de seu nome Fernando, era simultaneamente professor de matemática e de físico-química. A diretora, de seu nome Fernanda, casada com o diretor, acumulava igualmente a função de leccionar a disciplina de história. Os dois tinham dois filhos - um casal - ele, de seu nome Fernando; ela, de seu nome Fernanda. Os pais da família dos Nandos, aquando o desempenho das suas funções como diretores do externato, dividiam a escola em dois. De um lado os rapazes, do outro as raparigas. Os recreios eram duplicados em dois pátios, sem avistamento possível de um para o outro. Quando assoava a campainha de entrada, as raparigas esperavam pelo respetivo docente dentro da sala, enquanto os rapazes aguardavam no corredor, sem possibilidade de contato com o sexo oposto. Se por um mero acaso alguma das meninas amortalhadas numa das batas axadrezadas esmiuçasse qualquer aproximação a um dos do grupo do fruto proibido, estava sujeita a um castigo que podia ir de canastradas com a força de partir botões da tal bata, até ao chamamento formal dos encarregados de educação à direção. Com o passar do tempo fui percepcionando este conceito com um sentido crítico cada vez mais difícil de guardar em mim, começando a exteriorizar o meu descontentamento num crescendo proporcional ao meu próprio crescimento. O pior é que parecia ser uma luta inglória porque logo de antemão os seguidores deste sistema tiranizado e castrador eram a maioria, estando neles incluídos um número significativo de encarregados de educação, pessoas da comunidade, alunos e professores. Havia um ou outro vislumbre de contra-corrente, mas esses exemplares eram sempre em número demasiado pequeno para gerar uma mudança passível de ser considerada fenómeno sociológico. Esta fase da minha vida marcou-me negativamente (mesmo tendo sido uma alavanca para o apuramento da minha consciencialização) ao ponto de até à minha fase adulta me recusar a dirigir palavra aos diretores do dito externato quando me cruzava com eles na rua ou outro lugar qualquer. Quando olho para trás parece que estou a olhar para o agora. A persistência dos costumes e normas que comportam um esmagamento do outro em prol da vontade unilateral dos detentores do poder parece feita de pedra e cal, coexistindo com o mundo com a maior das normalidades para a maioria, sem nunca ser questionada, referida, contestada ou contrafeita. Felizmente todos os pedaços que constituem o meu passado e que me tornam naquilo que eu sou hoje fazem de mim uma contestatária profissional inconformada e proclamadora de ideias anti-sistema. Porque o sistema - "o conjunto de elementos, entre os quais há uma relação, disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si e que formam uma estrutura organizada" - está inequivocamente corrompido e por isso corrói-nos a alma, esmagando o nossa verdade com camisas de forças para o espírito. E disso eu recuso-me a fazer parte, doa a quem doer (incluindo a mim própria).

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