terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Pulsações

Há coisas que cabem no coração. E não depende do tamanho do órgão. Depende do grau de maleabilidade que a coisa tem. Se for rija e bicuda, pode ferir, rasgar ou fazer doer. Logo, é cuspida. Se for moldável e suave, mesmo que tenha aguço, não escareia. Às vezes as coisas que mais falta fazem àquele que palpita até são as mais pequenas. Para ocuparem aquelas lacunas com vácuo que tendem a ficar ocadas, dando um sentido de vazio ao que só um recheio faria sentir. As coisas pequenas também têm a dupla função de massa de ligamento entre as coisas maiores. Solidificam o todo sem ser no sentido de dureza e deixam-no com a força através da fama que a união tem nestas coisas. Estes são os corações grandes. Aqueles que por serem fortes têm muito para dar sem que o medo do vazio os assolape. Sabem que neles podem sempre voltar a entrar outras coisas moldáveis, suaves, pequenas, grandes e que há sempre muitas que lá cabem.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Paragens


Hoje é dia de divagar sobre o melhor lugar para abancarmos as nossas nalgas num autocarro. Não é que as ditas sejam as protagonistas desta reflexão profunda e pertinente, mas são, no sentido lato, a parte do corpo que está em contacto mais directo com o assento que nos acolhe. Posto isto, vamos então tentar eleger o lugar mais digno de regozijo enquanto se usufrui simultaneamente de um serviço personalizado de transporte comunitário. Os lugares da frente, os primeiros, são bons por um motivo: quando entramos no bus não temos que percorrer o longo caminho que nos obriga a contactos visuais com os restantes passageiros que, em 80 por cento dos casos olham para nós dos pés à cabeça e, em 90 por cento dos casos, emanam fronhas sisudas malfadadas e pouco estimadas pelos próprios donos e donas. Sei que em muitos casos a impossibilidade de se aceder a tratamentos médicos dentários é uma verdade incontestável pelos preços exorbitantes custeados em cada uma das várias consultas da especialidade que são necessárias até a dentição ficar aprumada. Ir ao dentista não é para todos, mas lavar os dentes já se torna mais acessível e há maneiras alternativas de o fazer sem que se recorra às marcas da berra que custam os olhos da cara. Posso deixar aqui uma dica: vão a uma drogaria e comprem bicarbonato. A seguir vão a uma mercearia e comprem um ramo de hortelã. Em casa moam os dois ingredientes juntos. Está feita a poção mágica que lava, branqueia e fortalece a dentadura. É barato. Muito barato. E assim qualquer um fica com acesso a um sorrir para a vida permanente. Diz que ela (a vida) costuma retribuir o sorriso. Também sei que a falta de caras alegres se deve a uma série de fenómenos sociais que deita por terra qualquer tentativa de dar a volta por cima. Quanto a isso também posso dar um conselho: organizem uma revolução, deitem abaixo os poderes instalados e, simultaneamente, revolucionem-se a vocês mesmos na maneira de olhar para o mundo com soluções diferentes e melhores para tudo e todos. Enquanto estas faltas de hábitos tenderem a afincar-se na sociedade, podemos constatar que o lado positivo dos primeiros bancos do bus são bons para quem não quer avistar pessoas sisudas, com falta de sorrisos pelo inerente espaçamento bocal que outrora servira de poiso a um incisivo ou canino ou pelo espaçamento encefálico que outrora servira de casa a neurónios. Os lugares do meio são daquele tipo de coisa que está no meio - não é boa nem má, não é sim nem sopas. Para além disso estão reservados a pessoas grávidas, com dificuldades motoras ou crianças de colo o que exclui automaticamente um parecer alongado para uma pessoa na minha posição. Não estou grávida, ainda não tenho muitas deficiências motoras e não costumo trazer comigo uma criança ao colo, pelo menos no sentido literal. Aproximamos-nos agora dos penúltimos. Aqueles que estão numa plataforma mais elevada do que os lugares que se lhes adiantam e que, por esse motivo, dão acesso a uma vista mais panorâmica, tirando as vezes em que alguém com estatura de dois metros de altura está sentado à nossa frente. Nesta secção do bus há várias categorias de lugares. Os das janelas que são bons porque nos oferecem de mão beijada uma boa desculpa para virarmos o nariz para o lado oposto do cheiro a suor e fluídos corpóreos retardados ou expelidos in loco e fingirmos que estamos a contemplar as maravilhas urbanas que se nos atravessam à frente ininterruptamente. Estes lugares têm duas desvantagens: 1º - quando chega a vez de sairmos na nossa paragem temos que falar com a pessoa que está sentada ao nosso lado. Normalmente, e como é um pedido, a pessoa faz uma cara igual às expressões faciais descritas no texto supracitado: sisuda. E nós ficamos a sentir-nos mal por termos afincado a sisudez numa pessoa que já de si é propensa a ser sisuda. 2º - como os lugares estão numa base mais elevada do que os dianteiros, os gazes quentes expelidos (como quentes que são) sobem, o que faz com que o cheiro desses mesmos gazes permaneça mais tempo nessa zona. Por outro lado, os lugares sem serem os das janelas têm um lado bom - podemos sair sem ser preciso falarmos com alguém ou contribuirmos para a carranca pegada que para ali anda. Mas há sempre um senão e neste caso o "mas" é não existirem grandes hipóteses de salvaguardar as papilas olfactivas das emanações de olores advindas de partes do corpo que deviam ser obrigatoriamente lavadas todos os dias (não vou aprofundar o descritivo). Se olharmos para a frente e como estamos num pódio elevado a favor da circulação de ar da própria deslocação do transporte, vem tudo o que é partícula gaseiforme (sejam peidos ou suores retardados) parar ao poiso onde nos encontramos. Se olharmos para um lado esbarramos com as zonas pélvicas dos compinchas passageiros que vão em pé. Se olharmos para o lado da janela o vizinho de lugar começa a pensar que estamos a olhar para ele/ela. Chegando ao fim da linha, estamos nos últimos lugares existentes. Todos em fila, encostados ao grande vidro das traseiras, o que por si, nos daria direito a uma vista privilegiada se tivéssemos olhos nas costas. Como não temos, não vale a pena inventar aspectos positivos sobre os últimos lugares do bus. O único e que até considero ser deveras relevante é que este banco corrido é o equivalente à mesa do canto do café. Sentimos-nos mais aconchegados e menos expostos. Excepto, quando nesse corredio, escolhemos o lugar do meio. Aquele em que ficamos com uma visão longitudinal sobre todo o comprimento de autocarro, até ao pára-brisas. Pára-brisas esse que nos acolhe a moleirinha violentamente caso o motorista seja dado a travagens bruscas em avenidas desafogadas ou só porque lhe apetece rir do mal dos outros.