terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Idade dos Porquês.


Há tanta coisa sobre o que escrever e, por esse mesmo motivo, existem também dias em que não se sabe bem sobre o que falar. Depois dos críticos mais credíveis existentes no berlinde que habitamos - os meus amigos e amigas - apelidarem as considerações aqui explanadas de cáusticas, apocalípticas, melodramáticas, profusamente exageradas e negativas, talvez seja o momento de uma tentativa de retorno à positividade. Deixo aqui o reparo, que de todos os textos que escrevi até hoje este talvez seja o exercício literário com maior grau de dificuldade de feitura.
O segundo reparo: a introdução supracitada foi escrita há cerca de 14 horas e alguns minutos, pelo que a continuação da mesma não vai coincidir com os conteúdos prometidos pela impossibilidade de deixar de ser cáustica, melodramática, exagerada e negativa num estaço de tempo tão curto. Assim sendo, hoje só vou escrever perguntas. Vou questionar assuntos que, como não podia deixar de ser, não interessam a ninguém, mas aos quais já entreguei muito do meu tempo que por si já não é muito.
  1. Porque é que as pessoas matam formigas? Que sentido é que faz pisá-las, esmagá-las ou borrifá-las com veneno? Elas não fazem mal a ninguém. Só roubam migalhas o que até ajuda à manutenção da salubridade habitacional. Os pedaços grandes de comida podem ser bem arrecadados de maneira a que este inseto trabalhador e honesto não consiga ultrapassar a linha da boa convivência com os seres humanos que o rodeiam.
  2. Porque é que as lâmpadas ecológicas têm formatos dantescos? Umas parecem rabos de porcos, outras parecem uma maquete de uma nave espacial de um filme de ficção científica dos anos 50. Não percebo a necessidade e persistência deste design que estraga qualquer tentativa de iluminação de bom gosto. Sei que as há redondas, simples, sem grandes rococós futuristas, mas essas devem ser um projeto experimental: nunca as encontro à venda e, das raras vezes em que tal acontece, têm a rosca fina demais para se adequar à boca do candeeiro.
  3. Porque é que as pessoas evitam tudo o que lhes faz medo e depois pagam para o ter? Por exemplo, são capazes de andar mais 10 quilómetros só para não atravessarem a pé um bairro "perigoso" e no dia a seguir pagam 15 euros para entrar na casa do terror.
  4. Porque é que as portuguesas continuam a insistir em usar saltos agulha? Portugal (ou grande parte) tem o chão das ruas em calçada portuguesa, o que pela designação evidencia que por cá, nesta cauda da Europa, existe, em regime de exclusividade, um chão feito de pedras cujas junções são irregulares criando espaços onde entram cinco dedos da mão quanto mais um salto agulha. As mulheres portuguesas já deviam conhecer de perto essa realidade e investir numa moda ajustada ao chão da terra onde nasceram e à própria da saúde ortopédica. É que existem outros tipos de saltos altos, só para o caso de não saberem.
  5. Porque é que a maioria das pessoas acredita nos políticos e quase toda a gente se separa das caras-metade por traição? Os políticos já provaram centenas de milhar de vezes que o que prometem não cumprem e até ousam fazer o oposto das intenções bradadas, ou seja, mentem com todos os dentes que têm na boca e repetidamente, durante anos e anos e mais anos. Mas as pessoas vão sempre votar neles (nuns ou nos outros - um dos dois). O(a) namorado(a) não age em conformidade com o contrato de exclusividade uma única vez e truca: está tudo acabado definitivamente.
  6. Porque é que as pessoas gritam com outras que não são surdas? Está provado que gritar fere os ouvidos e provoca irritabilidade ao gritante e ao ouvinte. Qual é o objetivo de nos irritarmos a nós próprios, aos outros e depois do ato levado à prática irmos à caixa dos comprimidos para sacar dos xanax? 
  7. Porque é que as pessoas gostam de ir a piscinas onde uma grande maioria que está de molho na dita alivia as necessidades fisiológicas que enchem a bexiga? Por causa do cloro? Desinfeta? E os pirolitos? Não faz mal beber xixi de estranhos desde que esteja desinfetado? Ok.
  8. Porque é que o esteriótipo de mulher bonita tem que vir com cabelos lisos na embalagem? (Se pensarem, neste preciso momento, numa mulher que seja figura pública e unanimemente considerada bonita, aposto que ela tem os cabelos lisos).
  9. Porque é que as pessoas poem "gosto" em coisas do facebook quando muitas das vezes do que gostam realmente é da pessoa que publica essas coisas? Existe uma coisa que se chama diálogo e essa coisa pode conter a frase "gosto de ti" que, por sua vez, é muito mais bonita quando é dita nos olhos e falada ao vivo em vez do clique num mero botão ou lá que raio é aquilo.
  10. Porque é que eu me dou ao trabalho de me expor desta maneira, publicamente com pensamentos e considerações desinteressantes que ainda me fazem, muito provavelmente, ficar com o rótulo de maluquinha? Pois, não sei. 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O Meu Tipo

Cada pessoa que tenho conhecido ao longo destes anos que já prefazem a meia idade afirma a pés juntos que não tem um tipo de homem ou de mulher preferencial. Sejam heteros, gays ou mistos, todos atiram para o ar a ideia de que a tipologia que mais os atrai é inexistente dando por isso a entender aquilo que já é universalmente sabido: "O amor não se escolhe. Acontece." Até certo ponto concordo, mas podemos dissertar nem que seja na imaginação sobre o perfil do género preferencial que mais se aproxima do nosso ideal. Eu, cá para mim, (e agora para todos) assumo que tenho um tipo de gajo. Essa ideia está-me tão nítida na cabeça  que se torna viável de a transportar para o universo físico das palavras escritas através de uma descrição adjetivada pormenorizadamente, a começar na unha do dedo grande do pé e a acabar na ponta do cabelo mais espetado. Gosto de homens suficientemente inteligentes e que, por esse motivo, não sentem a constante necessidade de o demonstrar. Do tipo dos que questionam tudo o que sabem e o que não sabem para ainda saberem mais. Ou seja, o meu homem ideal, por ser sábio, é meigo, respeitador, acalorado mas com a mesma dose de arrojo e surpresa sem as monotonias associadas aos ratos de biblioteca. Com surpresas na manga e, essencialmente, na cabeça. Esse homem é rico em ideias e milionário na capacidade de me fazer sentir uma rainha sem luxos advindos da matéria. Também tem que ser justo e conhecer a fundo o verdadeiro significado da palavra "ética". Não pode, portanto, ter o pescoço com uma curvatura angular na sua própria direção que o obrigue a ver-se apenas a si próprio. Os narcisos estão, assim, riscados da lista. Gosto de tipos a quem costumo chamar "cowboy giver". Gajos com espinha dorsal na alma, que pisam o palco da vida com firmeza e solidez, mas que têm um coração amanteigado incapaz de pisar os outros. Para além deste perfil, que considero ser a composição básica para um tipo poder passar à fase do talvez, o meu homem tem que adorar música e cinema. Não é preciso ter um nível cultural literário com graus académicos doutorados. Basta saber um bocado de tudo ao de leve, gostar de ir a concertos e de ver muitos filmes independentes. Nada de filmes mainstream hollywoodescos com cenas megalómanas de carros a alta velocidade, a chocarem de frente e a saltarem de um lado para o outro, com o protagonista a sair ileso. O homem da minha vida gosta de interpretar violências de almas e estados de espírito acutilantemente realistas. Para além destas características ele também deve ser militante convicto do decrescimento da matéria e, assim sendo, viver de acordo com o que diz, sem meias verdades ou postura de farsolas. E - muito importante - não quero ser eu a ensiná-lo. Ele já tem que ser assim, com defeitos ajustáveis aos meus, mas virtudes que me façam olhar para ele diariamente como o homem da minha vida. A honestidade também é palavra de ordem. Eu sou muito liberal e libertária mas o meu disco rígido foi formatado nos anos 80 e 90, altura em que a poligamia e a mentira eram tabu. Agora já não vou a tempo de o transformar numa versão mais moderna. Só indo para o lixo e comprando um novo o que faria com que eu própria deixasse de existir. E também não quero ser eu a pedir-lhe para ser assim. Ele tem que sentir isso na verdade. Na verdade dele. Um outro ponto essencial para uma relação aprazível é o mandatório do meu par ter que abominar ideais neo-liberais e pró-capitalistas. Mas escrever isto é uma redundância porque se comecei o texto por dizer que o homem ideal é sábio, é óbvio que não pode ser de direita. O exterior do meu cavaleiro andante não é importante. Mas só o quanto baste. Não sou fã de gajos-tipo-ken. Antes pelo contrário: idolatro toda e qualquer fisionomia que se assemelhe a imperfeições com peso e medida. Do tipo do Vincent Gallo. Aliás, iguais ao Vincent Gallo. Um homem assim levava-me ao altar. Um tipo justo, honesto, com grandes ambições intelectuais e igual ao Vincent Gallo. Deve ser por isso que nunca fui lá (ao altar).

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A lista




Estava no outro dia à conversa com uns novos amigos que são novos na amizade e na idade. Dei por mim a pensar que os cotas são uns chatos. Passam a vida a queixar-se, a tomar anti-depressivos e, seja qual for a dosagem dos mesmos, continuam deprimidos. Enquanto eles falavam, assaltou-me a ideia de que o ideal seria mantermos a alegria, positividade, energia e capacidade de reação ao longo do tempo, até irmos com os pés para a cova. O "está como há-de ir" proferido sistematicamente por uma das novas amigas novas aplicar-se-ia, a meu ver, num freeze temporal de alma e a malta conseguiria viver mais feliz até "ir". Mas, no decorrer da conversa foram desenvolvidas algumas ideias pouco amadurecidas sobre a visão geral da coisa (leia-se vida). A maioria das elações transportava uma frescura consistente, elevada a projetos super interessantes, com ideias inovadoras para o futuro próximo de cada um. Mas a jovialidade também transporta alguns revés. A forma, métodos e modo para alcançarem esses objetivos fez-me saltar da boca a frase : "vou escrever-vos uma lista das coisas que deviam fazer antes de serem oficialmente cotas". O entusiasmo deles foi de tal ordem que estive dias e dias a pensar que sou uma parva por achar que tenho a capacidade de dar conselhos úteis a duas pessoas que têm um caminho próprio a percorrer, sem terem que andar de mãos dadas com considerações de uma cota que tem a mania de meter o bedelho onde não é chamada. Mas, ao mesmo tempo, olho para isto como uma boa oportunidade de mudar algumas coisas para melhor, com base naquilo que fui aprendendo ao longo da vida e que agora considero serem ideias imortais para a vida. Quero sublinhar que a lista que se segue é a minha lista, em jeito de conselho, sem a arrogância de servir de manual de instruções para se viver (até porque se o houvesse eu já o tinha comprado) e que podem abusar dela com a única condição de que o farão com a consciência apurada e uma reflexão pragmática sobre se cada um dos pontos se adapta ao vosso imo.
1. Vivam cada momento como querem viver desde que não prejudiquem alguém com isso.
2. Nunca sejam o que os outros querem que vocês sejam.
3. Sejam frontais e corretos - não falem dos outros sem a presença dos mesmos na hora do falar.
4. Tentem ajudar quem precisa de ajuda.
5. Aprendam a meditar.
6. Viagem. Muito.
7. Nunca tratem os outros como seres inferiores.
8. Tentem enriquecer os vossos interiores. Encham-nos de informações sobre o máximo de assuntos existentes, experiências adquiridas e amor. 
9. Respeitem a natureza e façam o máximo esforço para viverem em harmonia com tudo o que faz parte dela (incluindo vocês próprios).
10. Fomentem a harmonia com tudo o que vos rodeia através de tentativas de contextualização sobre o que vos rodeia.
11. Usem o relativismo para explicar o mundo.
12. Façam desporto e tudo o que puder contribuir para o vosso bem-estar físico e emocional.
13. Dancem muito.
14. Quando estiverem prestes a rebentar, vão para um sítio isolado e gritem o máximo de tempo que conseguirem.
15. Comam muitos legumes e fruta.
16. Lavem os dentes todos os dias, várias vezes por dia.
17. Tenham filhos, mesmo que achem que não é a altura ideal.
18. Experimentem (nem que seja uma temporada) viver com o mínimo de dinheiro - criem alternativas para o dia-a-dia, aprendam técnicas de autonomia e estudem as múltiplas respostas.
19. Juntem-se a uma associação, seja ela qual for. Há sempre associações que trabalham nas nossas áreas preferenciais.
20. Partilhem tudo. Saberes, matéria, coisas boas, coisas menos boas.
21. Valorizem aqueles de quem gostam. Nunca os tenham como adquiridos. Estejam sempre com eles como se fosse a última vez.
22. Nunca se conformem com os ditames do poder ( nunca são a vosso favor).
23. Aprendam e estudem todos os vossos direitos.
24. Façam piqueniques em dias de sol e jantares em casa com amigos em dias de chuva.
25. Vejam filmes.
26. Façam amor.
27. Plantem coisas.
28. Vão a concertos punk.
29. Riam-se, chorem, zanguem-se, entristeçam-se, alegrem-se. Nunca recalquem o que sentem porque sentir faz parte de ser pessoa.
30. Enquanto fazem isto tudo, sejam felizes da maneira que vos faz mais feliz. 

domingo, 10 de agosto de 2014

A árvore


 Sou como ela
Com folhas do quente ameno
Que roçam e coçam o vento
Que canta com a brisa de fundo
Mas que fica e paralisa

Sou como ela
Despida na neve e no gelo
Sem manta para me tapar
Sem gruta para me abrigar

Sou como ela
Sozinha, com a boca trancada
Olhando a mesma paisagem
À mercê da serra e da faca

Sou como ela
De braços abertos para tudo
Casa para abrigar
Quem depois parte sem olhar
Que me deixa a chorar
Com a seiva que cola nas pernas
E que cristaliza a alma em fossil

Sou como ela
Viva sem respirar
Quieta e presa no chão
No chão de sempre
No chão que prende
No chão que não deixa ir
No chão que não deixa cair.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo


Não me dá grande vontade de perder o meu tempo a desgastar energias com aquilo que é óbvio há anos, que já prefazem décadas, que já constituem séculos. O óbvio está à vista de tudo e de todos. Só não vê quem não quer e, pelos vistos, muitos não querem ver. Preferem viver com miopias avançadas e astigmatismos graves uma vida inteira. Com a visão reduzida ao próprio umbigo e desfoque total para o que vai para além dele. Mas também não me dá grande alento ficar calada ou, neste caso concreto, paralisada dos dedos ao ponto de não escrever sobre a perfídia e tenebrosa praga que assola a maioria com uma cegueira que já não é ensaio e passou ao ato. Enquanto todos rezam por dias melhores, eu cá vou tentando, sem licença diplomada, devolver a vista a uns poucos. Na candonga, vou fazendo o que posso para operar os politicamente apelidados de portadores de deficiência visual que, sem quererem, contraíram a ultra contaminante mazela e que por sorte ou azar acabaram por esbarrar comigo. Sou uma espécie de barbeira medieval que finge ser barbeira só para não ser queimada pela inquisição porque até pesca um bocado de ciência (coisa do demo) e consegue extrair uma ou outra raíz putrefacta ou aniquilar um ou outro treçolho encastrado. Mas estas décadas de tentativas têm parecido muito longas em duração e muito curtas em resultados. Porque no fundo ninguém quer ser curado. É mais fácil seguir-se pelo caminho que o senhor nos destinou, seja quem for o senhor. Sem  o questionar ou sequer o tentar mudar. Por muito que remoa, a gente habitua-se à dor. A mudança, essa, é muito mais difícil. Vamos, então, continuar a abandonar-nos a nós próprios continuadamente. Desde que possamos avistar o nosso umbigo, está tudo bem. Comam-nos as pernas, os braços, a cabeça. Fiquemos uns coutos com olhos míopes - pegados aos umbigos, claro. Até o coração pode ir. A razão também. E que façam o mesmo aos nossos pais, irmãos, filhos, tios, amigos (se é que os há). Se até há uns tempos nos arrancavam só partes de nós doseadas de maneira a que houvesse tempo para a sua reconstituição em pleno num fingimento de presenteamento solidário, agora que nos abocanhem e rasguem e dilacerem. Eles, os senhores, em semi-forma de semi-deuses, sabem que só precisamos de olhos e de umbigos. Nem é preciso serem os dois da visão. Basta um. Se der para vislumbrar o buraco que outrora foi a tripa da vida, damo-nos por contentes e felizes. Já nem é preciso ser confesso. Dá menos trabalho assim. Sem bocas para falar. Só ainda falta uma coisa: inventar o não-comer. Nesse dia o Nosso Senhor Espírito Santo, Pais e Filhos limitada vão poder regozijar-se lá de cima dos céus, com a paz na Terra para toda a eternidade. Ámen.

sábado, 2 de agosto de 2014

A Experiência


Hoje matinei esbaforida. Mas onde é que eu estava com a cabeça quando fiz a estúpida consideração que retratar a vida através de imagens é mais rápido do que tecer comentários sobre a mesma através das palavras? Primeiro: não sou fotógrafa. Segundo: só o simples ato de transferir as ditas imagens para um PC demora uma eternidade, quanto mais dar um tratamento aprazível a cada uma delas num computador velho e caduco, que se diz portátil e já não é, que demora pelo menos um minuto a abrir uma janela e que faz um barulho estranho (que eu nunca associaria a um PC), tipo avioneta dos anos 30 do século passado. No dia em que teci essa consideração devia estar muito otimista e propensa a delírios advindos de uma experiência a que estou a ser submetida e que vai durar seis meses, todos os dias apelidados de úteis - como se os outros dois não servissem para nada - e na qual me voluntariei para estar fechada numa torre, dez horas por dia, com a oportunidade de ver a luz natural durante uns minutos repartidos pelo tempo e a assistir a um filme de 50 minutos em loop, em que não há palavras faladas e só se vê um rio em dias chuvosos. Quero deixar o registo que não estou a ser coagida por alguém, nem forçada a fazê-lo. Foi uma opção pessoal, por motivos pessoais. Para datar os acontecimentos devo dizer que a próxima semana vai corresponder à quarta, de muitos conjuntos de quatro que se adivinham até Dezembro. Posto isto, já posso afirmar que tenho dados suficientes em meu poder para dar início a conclusões cientificas à laia de teorias comportamentais pavlovistas sobre o efeito da experiência de clausura nestas circunstâncias específicas sobre o indivíduo. O primeiro dado conclusivo é que a pessoa, enquanto ser sociável, quando sujeita a um ambiente sem acesso direto à luz natural e a imagens continuadas que sugerem um tempo cinzento e chuvoso, começa a acreditar piamente que a estação do ano que se vive é invernosa, mesmo tendo conhecimento factual de que a realidade corresponde ao pico do Verão. A prova está no ímpeto diário matinal através do qual sou impelida a vestir cada vez mais roupa, de dia para dia, tendo chegado, nos últimos dias, às mangas compridas, casacos impermeáveis e sapatos fechados. A razão diz que a realidade é uma coisa. Os estímulos artificiais da experiência levam-me a fazer outra. Depois, constato que de dia para dia o afastamento da noção da realidade está num crescendo assolapado. A ideia de transmitir considerações através de um diário gráfico com fotografias é uma das provas. Essa ideia advém da estupefação que me assalta o âmago quando estou em contato com a rua, as pessoas, o céu aberto e tudo o que existe numa cidade terráquea. Estranho tudo e acho tudo maravilhoso ao ponto de querer registar fotograficamente esses momentos. O percurso diário pedonal de ida e volta para o local da experimentação é um regozijo para a minha alma. Deve ser o equivalente ao que um ex-presidiário sente quando é libertado, mas em graus de intensidade mais amenos. Outro sintoma que teima em aparecer numa escalada que agoura tornar-se num estado crónico da personalidade é o da irritabilidade. As pessoas que me acompanham diariamente nesta jornada experimental são cada vez mais o alvo preferencial (e único) de respostas ásperas e, pior, de teorizações macabras sobre a sua personalidade. Como não há acesso a informação sobre o que se está a passar no mundo e as tentativas de ler livros ou ocupar o cérebro com assuntos construtivos são sempre interrompidas por funções que nos são delegadas, a única coisa que resta é a análise superficial da personalidade dos compinchas e consequente relatório falado da mesma. Como ninguém é perfeito o que vem ao de cima são os defeitos que, por sua vez, são exauridos e explanados insistentemente chegando muitas vezes a atingir o grau de tese, com exageros exponenciados à alucinação. Houve um dia (fim de dia) em que encontrei amigos pelo caminho de retorno a casa. Perguntei-lhes a todos, um a um, o que é que estava a acontecer no Mundo. Ficaram a olhar para mim, com o espanto equivalente de quem vivencia um avistamento de uma coisa estranha por saberem que, normalmente, sou eu que falo sobre as conjunturas atualizadas ao detalhe. Só perceberam depois de eu lhes explicar o porquê da minha acefelidade. Eu, claro, entrei em estado de choque por saber que não só nada mudou como, pelo contrário, tudo está pior. Nesse momento pensei que é um privilégio estar dez horas por dia fechada numa torre que está longe de ser bombardeada e de poder sair do sítio em questão sem ter que andar escondida atrás de muros e moitas para evitar levar com um balázio na cabeça. Também conclui que o fecho de cada um dos dias que corresponde ao tempo que sobra para o retorno à realidade também não é assim nada de miraculoso. Primeiro porque a realidade é uma merda. Depois porque o tempo é tão pouco que só dá para tentar reequilibrar os níveis de sanidade e salubridade mental que outrora faziam de mim a pessoa que era. Ou não era? Já não me lembro.