quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Palavras


As palavras são vitais e conseguem, ao mesmo tempo, ser nada. Dependendo da sua utilização, como quase tudo na vida, podem ser a mão que apanha quem está a cair ou o pé que empurra quem já está de rastos. Depois existem as circunstâncias. Quando as palavras são ditas e acumuladas num rol frenético de verbalizações eufóricas mas não correspondem aos atos levados a cabo pelo corpo da boca que as profere, perdem o sentido, a profundidade, o significado e a vitalidade, chegando ao nada. Às vezes também se dizem palavras através do silêncio. O próprio silêncio é uma palavra. Normalmente precisa de eufemismos enfatizados por expressões faciais a acompanhar para termos uma percepção de que tipo de silêncio se trata. Pode significar coisas boas ou coisas más. As palavras são uma extensão de nós próprios. Mas faladas têm um peso diferente daquelas que escrevemos. Por algum motivo, é usada a expressão "o que se diz não se escreve". A palavra escrita é uma espécie de compromisso sem ser preciso assinar. Para mim, escrever é soltar o que trago comigo, as coisas boas e menos boas, de  maneira a fotografar esses momentos de alma que vou atravessando. Não existe uma máquina fotográfica para a alma, mas as palavras servem o efeito. Há quem diga que uma imagem vale por mil palavras, mas segundo o meu olhar, uma imagem conta uma história que, nem que seja muda, é pensada através de palavras ditas nas nossas cabeças. Quando as palavras são ditas em línguas diferentes é criada uma barreira comunicacional que dificulta a aproximação interior entre duas ou mais pessoas. As coisas mais profundas são difíceis de expressar mesmo através da nossa língua mãe o que subentende uma impossibilidade prática quando a situação é transposta para línguas forasteiras imperceptíveis. Muitas vezes penso que devíamos deixar-nos de patriotismos linguísticos e sobrepor a humanização a tudo o que acarreta afastamentos entre pessoas e povos. Devíamos fundir as línguas e criar modos de dizer, de expressar, de palavrar universalmente entendíveis. Talvez até seja essa barreira linguística a causadora de tantos mal-entendidos no mundo. A falar é que a gente se entende, mas nem sempre. Porque o dom da palavra, adopte ela o formato que adoptar, é desdenhado por muitos. Vivemos na era da imagem e a palavra conta pouco e por isso é mal tratada. Também considero que não se deve sobrevalorizar a dita. O prefixo "sobre" subentende em cima de e nada deve sobrepor-se ao grau de importância de todas as coisas que compõem o todo. Há aqueles que nunca ouviram uma palavra na vida e outros que nunca viram e que a sabem dizer melhor do que muitos que a usam com um despeito tal que até o vento se encarrega de as levar. A palavra está ligada ao nosso pensamento e a sua função é representá-lo. Assim, como representante legal das nossas ideias, sentimentos, sinapses e personalidade, a palavra deve ser levada em conta com esmero. Ela faz parte de um conjunto de ferramentas que nos deixa rimar com os outros, com o mundo e com nós mesmos.

sábado, 22 de novembro de 2014

Desalmada


Dói que desespera
Atravessado pela veia do pescoço
Fundo como um poço
Que o fundo não se mira
Pelo fundo que é.
Finge que não está
Cravada no meu peito
Debaixo como as larvas
Tão baixo que não piso
De tão debaixo que está.
Rasga por de dentro
Como serra no osso
Tão duro mas papel
Como o que temos por dentro.
Suga que esvazia
Secando o sangue que andava
Nos rios do meu corpo
Que secaram e entupiram
Pelo tudo que sugou.
Corrói que entristece
Em acidez que perfura
Que derrete só no toque
Que queima como o fogo
Que pelo fumo fustiga
Pondo tapumes nas portas
Para ao de leve me esvair
Sem o ar que preciso para fugir
Deixando de suster
Desistindo, aos poucos, de ser.

Heróis de Intas e Entas


A vida tem-me presenteado de pessoas recheadas de almas aveludadas contribuindo para a satisfação do palato do meu dia-a-dia, evidenciada por uma salivação pavloviana instantânea que se torna, muitas vezes, fisicamente visível. Estas pessoas que mereciam odes atrás de odes pelo que são, pelo que fazem e pela maneira como vivem, são super heróis e heroínas que passam despercebidos porque não usam collants de lycra nem capas de nylon berrantes. Mas não é esse o objectivo desta gente. Também não sei qual será mas acho que para eles o que conta não são os fins e sim os meios. Esta catrefada de pessoas que me orgulho de conhecer ou com quem já me cruzei faz coisas incríveis e apresenta-se ao mundo tal como é, sem pingo de estratégia monopolizadora de centralismos masturbadores do ego. Fazem, constroem, partilham, lutam porque são assim mesmo e não querem canalizar as energias para serem outra coisa. Isso é de coragem. Ter a capacidade de abraçar a vida com a tenacidade e lucidez necessárias para não incorrerem em desvios do caminho que traçaram é de gente. Fazem pranchas de surf e tatuagens quando bem lhes apetece, mesmo que no cartão de lei apresentem uma idade que não será aquela vista como a adequada para tais atos transgressivos da normalidade. Vão a concertos de música não ligeira a meio da semana e desconstroem o dito e apoderado pela maioria, numa idade que até há bem pouco tempo estava associada à antecipação do pé para a cova. Pegam nelas próprias e deixam-se levar por turismos de pés descalços, sem a customização generalizada inerente ao estatuto de adulto. Deitam-se no chão da rua depois de uma noite de diversão, sem se deixarem influenciar pelas leis com que o homem se encarcerou a ele mesmo. Libertam pré conceitos em espaços educativos onde as tentativas de moldagem de cabeças são prática comum. Ousam derrubar muralhas erguidas ao longo dos tempos para os encarcerar no grupo dos indesejados por parte de quem só deseja quem tem a guelra no sangue por ser propícia a uma energia profusa de contributo direto para a produtividade tal como ela é vista hoje. Têm a coragem de romper com o conceito de inutilidade associado a anos e anos de experiência vivida e, por esse motivo, aglomerada por sabedorias acrescentadas pelos dias, horas e segundos que só chegam com o tempo. As pessoas dos intas e dos entas de hoje em dia tentam resgatar a dignidade que tem vindo a ser diluída na acidez corrosiva de um sistema decadente que já provou ser falível e não fiável, mas que teima em empurrar a sua verdade para aqueles que ainda fazem questão de manter uma postura antagónica ao instituído. À Carola por ser a grande mulher que é fazendo do dia a dia a construção de uma mudança real e positiva junto a centenas de crianças em contexto escolar. Ao Marco por servir de exemplo para toda uma geração que não tem que se sentir castrada por estar a envelhecer e sim abraçar aquilo com que sonha, seja através de tatuagens, ou do que lhe der na real gana. Ao João por ser a pessoa que sempre foi conseguindo conciliar tudo na vida através daquilo em que acredita através da música punk, disseminando a ideia de ideal convicto. À João por ser livre e jovial, ignorando aquilo que um mar de gente quer que ela seja mesmo não sendo aquilo que ela quer. Ao Luís por ignorar o estatuto e poder e seguir o caminho que escolheu, usando as armas que tem para alertar os outros das maneiras mais simples e saudáveis. À Ana por ser amiga e lançar amor a tudo e todos, tenham eles metade da idade dela, tenham eles o dobro dos anos. À Teresa por romper com a imagem instituída associada a pessoas com quarenta anos de idade, lutando pelos seus ideais a cantar crust-punk, a ir a concertos de trash, com um trabalho de dia que é esmagador de quereres e vontades. À Conceição e ao Miguel por terem tido a coragem de começar do zero numa idade que todos associam ao vislumbre do atingir os cem. À Lia por rebolar na lama com as crianças como se fosse uma delas e por ensinar-lhes que a compota vem dos frutos que vêm da terra. À Maria João pelas provas diárias que oferece ao mundo de que a mulher é tão capaz como o homem. A todos os que são um exemplo daquilo que eu quero ser (eu própria) e que, por esse motivo, são os meus heróis.

domingo, 16 de novembro de 2014

Submersa


Desafogada fez respiro fundo
Trepou o banco e pingou a tecla
Depois outra e outra
Até sentir que não sentia
Largou das mãos
Deixou-as pousadas, quietas, sem pulso
Mingou-se ao chão
Comeu da lama
Correu nos espinhos
Tentou gritar
Ouviu que não ouvia
Subiu na torre
Galgou as escadas
Mordeu as cordas, para agarrar, para olhar
Viu que não via
Lançou-se à terra
Correu as léguas
Rasgou montanhas
Parou nos lírios
Inspirou para o fundo
Cheirou que não cheirava
Fez respiro fundo e afogou-se outra vez