sábado, 2 de agosto de 2014

A Experiência


Hoje matinei esbaforida. Mas onde é que eu estava com a cabeça quando fiz a estúpida consideração que retratar a vida através de imagens é mais rápido do que tecer comentários sobre a mesma através das palavras? Primeiro: não sou fotógrafa. Segundo: só o simples ato de transferir as ditas imagens para um PC demora uma eternidade, quanto mais dar um tratamento aprazível a cada uma delas num computador velho e caduco, que se diz portátil e já não é, que demora pelo menos um minuto a abrir uma janela e que faz um barulho estranho (que eu nunca associaria a um PC), tipo avioneta dos anos 30 do século passado. No dia em que teci essa consideração devia estar muito otimista e propensa a delírios advindos de uma experiência a que estou a ser submetida e que vai durar seis meses, todos os dias apelidados de úteis - como se os outros dois não servissem para nada - e na qual me voluntariei para estar fechada numa torre, dez horas por dia, com a oportunidade de ver a luz natural durante uns minutos repartidos pelo tempo e a assistir a um filme de 50 minutos em loop, em que não há palavras faladas e só se vê um rio em dias chuvosos. Quero deixar o registo que não estou a ser coagida por alguém, nem forçada a fazê-lo. Foi uma opção pessoal, por motivos pessoais. Para datar os acontecimentos devo dizer que a próxima semana vai corresponder à quarta, de muitos conjuntos de quatro que se adivinham até Dezembro. Posto isto, já posso afirmar que tenho dados suficientes em meu poder para dar início a conclusões cientificas à laia de teorias comportamentais pavlovistas sobre o efeito da experiência de clausura nestas circunstâncias específicas sobre o indivíduo. O primeiro dado conclusivo é que a pessoa, enquanto ser sociável, quando sujeita a um ambiente sem acesso direto à luz natural e a imagens continuadas que sugerem um tempo cinzento e chuvoso, começa a acreditar piamente que a estação do ano que se vive é invernosa, mesmo tendo conhecimento factual de que a realidade corresponde ao pico do Verão. A prova está no ímpeto diário matinal através do qual sou impelida a vestir cada vez mais roupa, de dia para dia, tendo chegado, nos últimos dias, às mangas compridas, casacos impermeáveis e sapatos fechados. A razão diz que a realidade é uma coisa. Os estímulos artificiais da experiência levam-me a fazer outra. Depois, constato que de dia para dia o afastamento da noção da realidade está num crescendo assolapado. A ideia de transmitir considerações através de um diário gráfico com fotografias é uma das provas. Essa ideia advém da estupefação que me assalta o âmago quando estou em contato com a rua, as pessoas, o céu aberto e tudo o que existe numa cidade terráquea. Estranho tudo e acho tudo maravilhoso ao ponto de querer registar fotograficamente esses momentos. O percurso diário pedonal de ida e volta para o local da experimentação é um regozijo para a minha alma. Deve ser o equivalente ao que um ex-presidiário sente quando é libertado, mas em graus de intensidade mais amenos. Outro sintoma que teima em aparecer numa escalada que agoura tornar-se num estado crónico da personalidade é o da irritabilidade. As pessoas que me acompanham diariamente nesta jornada experimental são cada vez mais o alvo preferencial (e único) de respostas ásperas e, pior, de teorizações macabras sobre a sua personalidade. Como não há acesso a informação sobre o que se está a passar no mundo e as tentativas de ler livros ou ocupar o cérebro com assuntos construtivos são sempre interrompidas por funções que nos são delegadas, a única coisa que resta é a análise superficial da personalidade dos compinchas e consequente relatório falado da mesma. Como ninguém é perfeito o que vem ao de cima são os defeitos que, por sua vez, são exauridos e explanados insistentemente chegando muitas vezes a atingir o grau de tese, com exageros exponenciados à alucinação. Houve um dia (fim de dia) em que encontrei amigos pelo caminho de retorno a casa. Perguntei-lhes a todos, um a um, o que é que estava a acontecer no Mundo. Ficaram a olhar para mim, com o espanto equivalente de quem vivencia um avistamento de uma coisa estranha por saberem que, normalmente, sou eu que falo sobre as conjunturas atualizadas ao detalhe. Só perceberam depois de eu lhes explicar o porquê da minha acefelidade. Eu, claro, entrei em estado de choque por saber que não só nada mudou como, pelo contrário, tudo está pior. Nesse momento pensei que é um privilégio estar dez horas por dia fechada numa torre que está longe de ser bombardeada e de poder sair do sítio em questão sem ter que andar escondida atrás de muros e moitas para evitar levar com um balázio na cabeça. Também conclui que o fecho de cada um dos dias que corresponde ao tempo que sobra para o retorno à realidade também não é assim nada de miraculoso. Primeiro porque a realidade é uma merda. Depois porque o tempo é tão pouco que só dá para tentar reequilibrar os níveis de sanidade e salubridade mental que outrora faziam de mim a pessoa que era. Ou não era? Já não me lembro.

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