segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Escrever Direito Por Linhas Tortas

Ultimamente tem-me vindo à cabeça a ideia, várias vezes insinuada pela minha avó, que devemos ouvir o que o povo diz através dos ditados. A sabedoria popular era para ela uma verdadeira aula de conselhos sabidos por quem os viveu ao longo de séculos e que, com base na experiência adquirida,  foram ficando em jeito de aviso. E depois ainda temos a mais valia de podermos escolher qual deles se adapta melhor ao momento. É que para uma única ideia existem várias expressões idiomáticas sendo por isso quase certo que pelo menos uma delas se vai moldar à lição que aprendemos ou à fase que atravessamos. Por exemplo, quando alguém nos mente. Consoante a situação podemos usar a velha máxima "apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo". Contudo se o mentiroso for coxo a ideia do manqueio sobrepõe-se à da mentira e deixa de sortir o efeito desejado. Mas há sempre alternativa - "Mentes com todos os dentes que tens na boca" - aqui corremos o risco de estarmos a dirigir-nos a alguém sem dentes ou com poucos exemplares vivos da dentadura de origem o que também deita por terra a intenção. Contudo, como era preciso ter muito, muito azar para que o mentiroso em questão fosse coxo e desdentado ao mesmo tempo, uma delas serve o carapuço na certa. Continuando na mesma temática podemos ir ainda buscar a frase "a mentira tem pernas curtas". Neste caso, mesmo que o mentiroso seja desproporcional às medidas standard dos membros inferiores, nós só estamos a categorizar a mentira em si e não o seu portador. É óbvio que se estivermos a dirigir-nos a um anão a coisa não cai tão bem, mas as hipóteses de se dar o caso são de uma num bilião o que também deixa a validação da mesma num grau positivamente satisfatório. Vejamos outro exemplar que pode ser adaptado a uma situação em que a mentira coexiste com o momento: "pela boca morre o peixe". À primeira vista esta é de todas a mais inofensiva e a mais universalmente adaptável. Só num remoto e inabitual acaso é que iríamos estar de frente a falar com uma solha ou um pargo, para além de mesmo assim haver em Portugal apelidos de pessoas que pertencem à fauna marítima: Peixinho, Robalo, etc. Mas não há motivos para apoquentamentos. A grande maioria dos apelidos portugueses é de outros animais (Coelho, Carneiro, Raposo, Pinto, Carrapato, Leitão, Periquito, etc.). Também podemos escolher a expressão popular com base na estação do ano em que vivemos a experiência, como por exemplo "estás a enfiar-me o barrete". Se isto for dito no inverno até se torna uma acusação acolhedora e de certa maneira aconchegante. Alguém nos mente e nós fazemos um paralelismo de aquecimento reconfortante numa época do ano em que está um frio de rachar. É simpático sermos simpáticos para os outros mesmo quando eles demonstram ser uns pulhas para nós. Mas se for Inverno e nós estivermos perante uma pessoa com tendências depressivas graves já fica de fora a frase "apanhei-te com a boca na botija". Aqui podemos substituí-la por "apanhei-te com as calças na mão". Cai melhor, convenhamos, pelo menos simbolicamente. Só com o exemplo da mentira podemos ver que o universo das deixas populares é rico em verdades e devíamos ouvi-lo com esmero, respeito e atenção. O povo é quem mais ordena no que respeita à experiência de vida e desenvolvimento de competências no conhecimento do próprio comportamento das pessoas. Há que aceitar esta dádiva herdada dos nossos antepassados de bom grado. Até porque a cavalo dado não se olha o dente e de um livro fechado não sai letrado 

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