quarta-feira, 25 de junho de 2014

É a Loucura.


Partindo do princípio que uma lavagem cerebral obedece a uma série de técnicas, ordenadas metodologicamente, baseadas numa persistência de sobrexposição de ideias e ideais por parte de terceiros e dirigidos a um sujeito, numa linha temporal contínua que pode durar semanas, meses ou anos, eu sou louca. As quarenta e duas primaveras que carrego têm sido, desde tenra idade, acompanhadas persistentemente por uma ideia de terceiros sobre a minha pessoa, que se resume a uma adjetivação simples, mas constantemente proferida e ecoada em volumes sonoros altos, médios e baixos por muita gente: "tu és louca". Passo a relatar alguns episódios em que essa composição frásica foi a eleita para me definir enquanto pessoa, tendo acabado por sortir efeito porque agora já acredito que sou louca e assumo-o publicamente.
Tinha cerca de 5 anos e vivia em Moçambique numa terra chamada Montepuez. Era uma aldeia de agricultores onde reinava o plantio de algodão. A minha família já lá estava estabelecida há muitos anos, sendo eu a primeira nada da terceira geração. Vivíamos numa casa com um alpendre que era um dos meus sítios de eleição para ir comer chupa-chupas molhados em água gelada antes de cada lambidela. Como aquilo era uma fonte prazerosa de momentos especiais achei que devia ser partilhada com o máximo de pessoas e comecei a ir à mercearia dos meus avós buscar o máximo de chupa-chupas que as minhas manápulas de cinco anos conseguiam carregar. Depois distribuía-os por todos os miúdos e miúdas que por ali andavam e ficávamos todos sentados no alpendre a molhá-los em copos com água gelada e a lambê-los. Durou durante uma fase. Depois "os crescidos" descobriram e acabaram-se as lambidelas açucaradas. Ralharam comigo e disseram: "Tu és louca! Não podes dar chupa-chupas e copos com água a toda a gente!" Nunca cheguei a perceber o porquê da apelidação do ato como sendo de loucura mas, contrariada, acabei com ele. Passados uns meses resolvi tirar todos os brinquedos que tinha numa casinha tipo anexo e pô-los no mesmo alpendre que acolhia as lambidelas de outros tempos. Achei que não precisava de tantos brinquedos e resolvi distribui-los pelos miúdos e miúdas que outrora molhavam chupa-chupas comigo. Lembro-me da felicidade de um deles a agarrar numa girafa insuflável (que na altura parecia gigante), com um sorriso escancarado ao ponto de se ver a goela. Quando "os crescidos" deram por um anexo vazio de bonecas, bonecos, jogos e girafas repercutiram as mesmas palavras: "Tu és louca! Não podes dar tudo o que tens aos outros!". Os anos passaram e com milhares de soadas equivalentes pelo entremeio, engravidei e informei toda a gente que ia avante com a coisa. Tinha acabado de ser contratada por uma empresa, vivia sozinha e tinha vinte e dois anos. Reuniu-se o comité de emergência familiar e a palavra mais proferida durante o plenário foi: "Louca". Desta vez já não tinha cinco anos e fiz o que quis. Com muitos episódios equivalentes no decorrer do passar do tempo, com namorados a entoar a mesma designação de loucura de que sou portadora, ora porque discutia com eles quando eles me traíam, ora porque os chamava à razão quando estavam a ser injustos, ora porque não admitia que me batessem, ora porque pura e simplesmente chegava à conclusão que eles não tinham nada em comum comigo e acabava a relação, a lavagem estava a afincar-se em mim e, a partir de determinada altura, comecei a pensar que talvez fosse mesmo louca. O processo que se tinha iniciado estava, finalmente, a dar os seus resultados. Então comecei a tentar contrariar essa imagem que eu já estava a criar de mim própria e deixei a profissão a que me tinha dedicado por uns longos e exaustivos 18 anos, decidindo voltar a estudar numa área que sempre me interessou: intervenção comunitária. Toda a gente, sem excepção, disse: "Tu és louca! Ganhas milhares de euros a tentar convencer os outros a comprar coisas e vais sair para aprenderes a ajudar os coitadinhos?!? És louca, só pode!" Mas lá fui eu, a perseguir a minha loucura, convicta que os que me rodeavam é que estavam loucos em acreditar que o ter é mais importante que o ser. Estudei, acabei o curso e mergulhei em voluntariados, projetos de intervenção comunitária, ideais de justiça, solidariedade e equidade. E qual é a palavra que usam para isso? Louca. Sou louca por tentar ajudar os outros, por achar que se fossemos todos assim a vida era muito melhor para todos. Sou louca por gostar que me respeitem e fazer questão de respeitar toda a gente, sejam putas ou mendigos. Sou louca por não gostar de conflitos e tentar encontrar soluções para todos os que não as acham. Sou louca por não dar valor à matéria e estar numa busca constante de alternativas para romper com um sistema debilitado em que quem reina não são as pessoas e sim o dinheiro. Sou louca por gostar mais de vegetais do que de bocados de animais. Sou louca por ter mais prazer em fazer um piquenique do que em ir a um restaurante e pagar 20€ para comer coisas que posso eu fazer por um terço do preço, no meio da relva ou com a areia nos pés. Sou louca porque me revejo no direito de viver com dignidade sem um machista a dar-me ordens, a mal tratar-me e a proibir-me de me vestir como eu gosto. Sou louca porque vejo móveis seculares deitados no lixo e trago-os para casa dando-lhes o protagonismo que merecem. Sou louca porque penso sempre nos outros antes de tomar atitudes que os possam magoar. Sou louca porque não engano ninguém em nenhuma ocasião. Se isso é ser louca, eu sou louca.


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