domingo, 22 de junho de 2014

Na Boa Vai Ela


O vagueio domingueiro matinal pelas ruas da cidade, mesmo que propenso a doenças advindas de um ar saturado de poluentes nocivos, só traz benefícios.

Primeiro, encontramos objetos abandonados por companheiros de uma vida que se renderam à facilidade numeral tangível dos móveis de auto-montagem. Esses encontros são quase poéticos: uma quarentona sozinha, assaz defensora do decrescimento da matéria e, por isso, adepta da reciclagem e reutilização, encontra cadeira sexagenária sem-abrigo com o costado mal tratado. Junta-se a fome com a vontade de comer e lá vai a quarentona de cadeira às costas, para ser reabilitada, curada e mimada até voltar a brilhar.
Segundo, as probabilidades de encontrarmos amigos ou conhecidos eleva-se ao expoente médio, porque a matina do dia da missa de outras gerações é o equivalente a prolongamentos causados por empates de levantamentos de copos de sábado à noite da minha geração. É divertido estar com a espertina e a lucidez de uma noite bem dormida e depararmo-nos com a fase ante-coma do pessoal. Tentam sempre levar-nos a beber um copo como se a tarefa de entrarmos no mesmo nível de embriaguez por dá cá aquela palha fosse possível de concretizar. Quando se apercebem que tal desejo nunca vai atingir o patamar do realismo, desistem de tentar e, ao mesmo tempo, como que por milagre, dá-se um estranho fenómeno: ficam todos caretas, como se o etílico ganhasse asas e voasse para fora dos seus corpos. É sempre um grande corte encontrar alguém que se conhece que não esteja a andar aos esses ou a falar com a língua encaracolada. É um murro no estômago e, de repente, entram todos no modo automático do "tenho que ir para casa dormir". Para eles é chato, mas para quem assiste (para os cortes) é cómico. 
Outro benefício de andar, neste caso no centro histórico de uma cidade apelidada de urbe das sete colinas, é a quase imediata tonificação dos glúteos e de outras partes do corpo que, com o passar dos anos, deixam de reagir à vontade passando a obedecer cegamente e com um conformismo desinquietante à lei da gravidade (com a idade todos os músculos vão perdendo o espírito revolucionário, redimindo-se a leis e regras inventadas por terceiros - até o cérebro).
Um quarto ganho destes andamentos é a aprendizagem sociológica informal que podemos desenvolver. A homossexualidade saiu definitivamente do armário e ainda bem que assim foi. Com este grito do Ipiranga da inclinação sexual das pessoas, não só a liberdade ganha pontos, como todos sabemos à priori com o que podemos contar. Se avistarmos um espécime bem parecido e com cara de quem tem meio palmo de testa, basta olhar para o que traz agarrado à mão. Se for outro gajo tiramos daí o sentido e seguimos em frente sem perder um milésimo de segundo a matutar nos "se" que daí poderiam advir. Para além disso, valorizo a transparência nas pessoas. É menos mau ser enganada do que ir ao engano. 
A quinta mais valia de andar a penantes é o regresso a casa. Com o carregamento dos móveis resgatados, tonificamos ainda mais os glúteos, os bícepes, os gémeos e todos os seiscentos e tal bocados de carne que compõem parte do nosso corpo, dando cabo de uma boa percentagem da camada adiposa que teima em colar-se a nós num crescendo paralelo ao passar dos anos. Depois, adotamos um sorriso aparvalhado a pensar nos amigos etilizados e ficamos contentes por saber que eles ainda estão vivos mesmo ao fim de vinte e tal anos a sufragar a borga. Por fim, chegamos a casa sem alguém para nos dizer o que fazer e como fazer e quando fazer. É tão bom.

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