sábado, 19 de julho de 2014

Ponha Aqui o Seu Pézinho


Parece hipócrita nos dias que correm, mas é merecedor de alguma atenção o facto constatado pela primeira pessoa do singular que anda a germinar por esse mercado laboral afora: os sapatos têm que ser fechados. Faça chuva ou faça sol, tenhamos bolhas ou não, pés chatos ou porreiros, calos ou pele fresquinha, joanetes ou filipetes, fungos ou esterilizações, unhas bonitas ou feias, encravadas ou com ordem de soltura, é mandatório que as pessoas não mostrem a pecaminosa, lasciva e ofensiva unha do dedo grande de qualquer um dos pilares do nosso corpo. O pé está para os tugas como o ombro é para os afegãos. Mostrá-lo é o novo e hilariante pecado mortal do ocidente. Criado por quem? Por Deus. Porquê? Porque nenhuma pessoa teria capacidade imaginativa ao ponto de criar uma norma que vai contra o bem estar da própria espécie terrena, fazendo com que as consequências da sua criação se virassem contra ela própria. É que trabalhar num país em que há dias que atingem a módica temperatura de 41º com sapatos fechados é como ir para o deserto do Sahara passar o dia com uma samarra encasacada e uma manta de retalhos de felpa. O calor é tanto que mesmo que o pé tenha sido, em tempos, uma zona do corpo saudável , com as falanges e falanginhas em bom estado de conservação e com uma aparência aceitável, começa imediatamente a processar uma mutação corpórea visível a olho nú. Mas o que está aqui em causa não são propriamente os pés. É a cabeça. A falta de liberdades e a invasão do individualismo que diferencia cada um de nós do outro começa por pequenas coisas. O Mundo está carregado de comportamentos com tipologias do género e todos eles, sem excepção, começaram por pequenos agouros. As tentativas de igualar e tabelar cada indivíduo por moldes, sem possibilidade de expressão do próprio querer, são diariamente demonstradas através de graus mais ou menos intensos, por vários pontos geográficos onde existem seres humanos. Mas o pior é que estas normas têm o intuito separatista de uma identificação hierárquica vertical de maneira a que os superiores sejam identificáveis automaticamente pelos demais através de roupagens classicistas e desiguais. A ralé veste-se como eles querem, em modo de produção fabril com aparências replicadas. Eles vestem-se como lhes prouver, pelo poder subentendido na liberdade de escolha, de expressão e superioridade escalada pelos próprios. E eu pergunto-me a mim própria o porquê da aceitação generalizada destes ditames. Se fossemos mais produtivos e o mérito dependesse do que trazemos calçado o Mundo era um lugar perfeito. Enfiávamos os pés no sapatinho mágico à laia da menina do Feiticeiro de Oz e plim! Ficávamos instantaneamente transformados no funcionário do mês, do ano, da vida. Não ia ser preciso estudar, lutar pelo saber, fazer para aprender. Como até agora ainda não me deram uma explicação plausível para esta norma social contemporânea (quando eu era nova nunca ouvi a frase "os sapatos têm que ser fechados") eu não a acato de bom grado. Toda e qualquer tentativa de me igualarem ao outro à força, seja pelos pés, mãos, cabelo, unhas das mãos ou o que for é sinónimo de perda da minha liberdade. E se pelo Mundo fora já assistimos a ditaduras desumanas com uma apatia brutal e distante, pelo menos que me deixem os pés em paz. Eu prometo que cumpro as funções que me são designadas com entrega, dedicação, profissionalismo e inconformismo, claro.

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