quarta-feira, 9 de julho de 2014

Carta Aberta a um Vizinho Fechado


"Há sempre um vizinho que degenera." Alguém disse. Eu tenho um. O do palacete. A mim tanto se me fazia a existência do senhor não fosse o caso da janela do meu quarto estar diretamente virada para uma parte do seu exótico e profuso jardim que, por sua vez, é o ponto de passagem para a pessoa em questão entrar e sair de casa todos os dias. Para agravar a situação, eu moro no rés-do-chão. Digamos que se a distância fosse ligeiramente maior eu teria hipóteses de conseguir atingir uma maior quantidade de momentos de calmia e serenidade - não ia conseguir ouvi-lo. Nunca fui daquelas de ligar em demasia ao que os outros dizem (os meus pais que o digam). Mas quando aquilo que é dito é sobre mim sem a decência de ser para mim, nos olhos, com a agravante de se tratar de um mal-dizer constante, snobe, prepotente, com laivos de tirania, eu saio da órbita e disparo tipo meteorito kamikase, pronta para colidir com outro mundo sem dó nem piedade. Mas como tenho tempo de sobra para respirar até dez (ou até mil) e para canalizar os maus pensamentos para um cofre onde ficam bem guardados, resolvi escrever uma carta aberta ao tal senhor. Pode ser que um dia, numa hipótese tão remota como o planeta Kepler 22-b, ele leia esta carta.

"Exmo. Senhor:
Não lhe pergunto se está bem de saúde porque consigo constatá-lo diariamente através da energia prolixa com que dita ordens aos seus subalternos. Também não lhe pergunto se a vida lhe corre de afeição, porque através da janela do meu quarto consigo perceber que se sente deveras incomodado e importunado por me ter como vizinha. Esse é o motivo que me leva a escrever-lhe esta missiva. 
Não foi com intenção de constituir uma fonte para o seu mal-estar que vim para aqui viver. Longe disso. Agrada-me saber que aqueles que me rodeiam estão bem, tentando fazer o que está ao meu alcance para contribuir para o seu bem-estar. Contudo, no que respeita à sua pessoa, não estou a conseguir.
Reparei que ficou deveras incomodado por ter posto umas cortinas de fios na janela do meu quarto quando proferiu a sua indignação e consternação pelo sucedido. Nunca pensei que tal ato pudesse constituir fonte de tanta perturbação. Passo a explicar-lhe o porquê da minha escolha decorativa das cortinas de fios: a janela do meu quarto vive à sombra do seu palacete pelo que prefaz uma luz natural pouco abundante para o seu interior. As cortinas de fios, por serem de fios, permitem achar um meio-termo, um compromisso, entre a privacidade necessária de um quarto de dormir e a oportunidade de poder usufruir em simultâneo de algum rasgo da luz natural do dia. 
Constatei que também lhe faz espécie que as janelas da casa onde vivo estejam sempre entreabertas. A sua dissertação diária sobre o assunto que teoriza em torno de uma casa sem ninguém, na qual não se ouve um barulho que seja e que tem as janelas sempre entreabertas não deve continuar a ser fonte de desespero para sua excelência porque cá em casa está sempre alguém e as janelas entreabertas servem o único fim de arejar o interior. Não se ouvem barulhos porque felizmente somos todos muito civilizados e sabemos viver sem que para isso tenhamos que usar decibéis que firam as susceptibilidades dos outros.  
Ontem gritou com uma das suas subalternas num tom aflitivo sobre o facto de nós termos atirado cascas de tinta para o chão do seu jardim. Não foi minha intenção provocar tal consternação, mas as grades que vossa excelência colocou nas janelas da casa onde vivo foram limpas. Contudo, como são velhas e a tinta está a descascar não se conseguiu evitar que caíssem alguns pedaços dessa tinta antiga para o seu esmerado jardim. Quando se exaltou disse igualmente que eu deveria ter ido tocar à sua porta para lhe pedir autorização para limpar as grades. Peço desculpa pela falha em questão mas pensei que como as grades estão colocadas nas minhas janelas da minha casa eu pudesse limpá-las de vez em quando. Fica então acordado que a partir de hoje é sua excelência que fica responsável pelo ato de limpeza das grades com a ressalva de que a mesma garanta o minimo dos níveis de higiene, evitando o crescimento de um microssistema biológico de espécies aracnídeas e similares.
Por fim, quero deixar claro que sempre que existir alguma situação que seja propensa a criar-lhe qualquer tipo de desiquilíbrio emocional pode dirigir-se à minha casa (sabe onde moro) para falarmos pessoalmente e tentarmos resolver o problema. Assim também vai poder deixar de me chamar a mim e à minha família de "esta gentinha" visto que farei questão de lhe dizer os nomes de todas as pessoas que aqui moram.
Sem outro assunto, despeço-me com os melhores cumprimentos.

A vizinha do rés-do-chão." 

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