quinta-feira, 28 de maio de 2015

Acefalismos Universais do Reino do Homem


O pessoal anda todo ceguinho com a ideia de que é preciso ser-se positivo. As palavras de ordem que tilintam diariamente por essas cordas vocais afora são irritantes e deixam-me a mim negativa. No que respeita às relações do foro amoroso podemos dar um salto brusco até ao dia de São Valentim para nos apercebermos com um exemplo prático da amplitude do grau de anomalia que as coisas atingem. É o amor, a felicidade, a troca de fluídos corporais - tudo condensado num dia com uma denominação completamente démodé porque é desadequada à realidade expressa aquando de uma junção com cariz carnal e hormonal de um ou mais indivíduos. Já ninguém diz "eu namoro" ou "eles namoram". Então porquê o nome "Dia dos Namorados"?. Pois que não faço ideia. Hoje em dia diz-se "andar com", ou "ter um caso", ou "comer alguém" (um gajo, uma gaja ou os dois). Até as redes sociais adotam uma terminologia diferente das dos tempos antigos - "numa relação com" é a cena que resume um caso amoroso, mesmo quando se usa a mesma expressão para quando vamos passear o cão à rua ou para descrever o modo de locomoção eleito. Tratem de acompanhar os tempos modernos se fazem o favor, seja lá quem for que dita estas regras e costumes. Outra expressão que me faz espécie e deixa deveras consternada é "empreendedorismo". Toda e qualquer pessoa que tenha uma mão cheia de dinheiro abre uma empresa e passa a ser oficialmente reconhecido como empreendedor. Há boas ideias, não digo que não, mas falando com conhecimento de causa, sei que não basta termos meio palmo de testa e capacidades inventivas para elevar uma ideia ao patamar da realidade. Para isso é capital termos capital. Sai mais um pedido: tratem de criar incentivos justos e equitativos se fazem o favor, seja quem for que tem o poder para isso. Continuando a saga das palavras que nascem que nem coelhos nas bocas do mundo vamos, então, até uma que me transporta inadvertidamente para uma repulsa compulsiva e psicossomática de coceira, talvez pela vaga semelhança com a palavra comichão: "coaching". Coaching vem da palavra coach que, em português, significa treinar. Ora coaching deve ser um processo de treino. Mas de quê? - perguntam vocês. Aqui é treinar competências até adquirirmos a tonificação bastante para sermos capazes de elevarmos o nosso ego a uma altura que qualquer um que o veja acredite que ele é de facto grande. Esta é, então, a expressão que se usa para aprendermos a convencer os outros que somos muito bons. Em quê? Não interessa. Somos muito bons em tudo o que os outros quiserem. Esta cultura da palavra efémera surge em prol da ação provada alimentando desta maneira uma série de galinhas poedeiras de ovos de colombo que parecem reproduzir-se como lebres com o cio. "Competências" também anda na língua de toda a gente, mas aqui há um desdobramento tão grande de aplicações da dita que assumo desde já que não tenho competências para enumerar todas. Mas aqui ficam algumas: competências sociais, competências profissionais, competências intelectuais, competências sexuais, matrimoniais, parentais, linguísticas, etc., etc.. O grave de toda esta rotulagem desenfreada é que a mesma faz desvanecer a força impulsionadora da relatividade e pluralismo que fazem que o mundo avance de mãos dadas com a tolerância e o respeito pela diferença. Eu posso ter, por exemplo, competências sociais bastante desenvolvidas e não gostar de falar em público. Também posso ser uma excelente mãe aos olhos daqueles que acham que o papel de mãe é assim ou uma péssima mãe aos olhos dos outros que vêm a coisa de maneira diferente. Estarmos constantemente a rotular o estado de espírito, comportamentos, personalidades e afins é a mesma coisa que dizermos que uma vagina só deve servir para mijar ou que um ânus só deve ter o propósito de cagar. É estar a pôr de lado todos os entremeios que compõem o todo de cada um de nós ofuscando, na maior parte das vezes, aquilo que de melhor temos, ora porque esse melhor não responde aos critérios da pré-definição achada, ora porque não está previsto numa qualquer alínea dos requisitos estabelecidos.      

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